Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

28.12.05
 
O envolvimento de crianças em actos de violência praticados por gangues*
Quando falamos de violência e de direitos da criança estamos primacialmente a pensar em actos de violência perpetrados por adultos em que as vítimas são crianças. Mas há também situações em que as crianças são, não só vítimas de violência, mas também seus autores , nomeadamente enquanto membros de gangues organizados. Na Europa, a taxa de violência juvenil aumentou de forma acentuada em meados dos anos 80, início dos anos 90. Nalguns países os números oficiais apontam para um crescimento da ordem dos 50 a 100 por cento.

Certos elementos permitir-nos-ão perceber melhor o funcionamento dos gangues, sua dinâmica, forma e razões pelas quais alguns jovens se sentem atraídos por eles enquanto outros conseguem resistir à tentação desses gangues. Finalmente, iremos passar em revista alguns exemplos de boas práticas para lidar com este fenómeno.
Apesar de não existir nenhuma definição unanimemente aceite de gangue, podemos considerá-lo uma «organização criada na rua e composta pelos socialmente excluídos ou pelos membros alienados ou desmoralizados de uma sociedade em que domina outro grupo racial, étnico ou religioso.».
Alguns autores definem um gangue como uma associação organizada com um nome e símbolo próprios, líderança identificável, um território geograficamente determinado e um padrão de reunião regular. Segundo a Polícia Judiciária, em Portugal os gangues são extremamente voláteis e informais, sendo constituídos de maneira espontânea, o que cria muitas dificuldades às autoridades para lidarem com eles, devido à sua enorme capacidade de autoregeneração. No caso de estruturas soltas e informais, mesmo se alguns membros do gangue forem apanhados, algumas horas ou dias mais tarde o gangue já encontrou novos membros e está pronto para funcionar de novo.
Os factores de risco que podem promover o aparecimento de gangues incluiem designadamente a existência de enclaves urbanos de pobreza (que foram frequentemente vítimas de uma má política de urbanização);grande percentagem de jovens, níveis muito baixos de educação e taxas disproporcionadamente elevadas de desemprego ; ausência ou escassa presença de forças de segurança e de outros serviços públicos; aparelho estadual violento, que tende a agir de forma reactiva e repressiva; acesso a economias ilegais; e acesso a armas de pequeno calibre, que permite aos gangues dominarem territórios, populações e recursos.

Existem algumas características comuns nas histórias pessoais das crianças membros de gangues, nomeadamente em relação aos seus contextos familiars, educativos e económicos :

A maioria destas crianças são oriundas de famílias monoparentais, presenciam violência doméstica ou mantêm fracas relações no seio da família ou vivem em casas sobrelotadas sem condições de privacidade.

No que concerne ao contexto educativo, as crianças membros de gangues abandonaram a escola (voluntariamente ou por terem sido expulsas).

Em matéria de contexto económico, as áreas dominadas pelos gangues –urbanas ou rurais – são invariavelmente pobres. Quando solicitadas para descrever o estatuto familiar da sua família, quase todas as crianças entrevistadas, no âmbito de um estudo feito nos cinco continentes, afirmaram ser oriundas de famílias pobres ou relativamente pobres. Num estudo elaborado em Portugal sobre este assunto, as conclusões mostram que nestes casos as crianças não encontram um «modelo de sucesso» em casa. Os pais estão desempregados ou têm empregos subqualificados, trabalham durante muitas horas e auferem salários de miséria. A reacção destas crianças ou jovens consiste em procurar uma vida melhor, diferente e mais fácil – e para eles a solução consiste em juntar-se a um gangue.
Um estudo realizado numa favela do Rio de Janeiro aponta para os seguintes quatro factores que permitem às crianças resistir aos gangues :
1. Apesar de as crianças em questão serem igualmente oriundas de famílias desestruturadas ou monoparentais, todas elas possuíam uma pessoa de referência presente, isto é, uma pessoa à qual as crianças se podem dirigir em caso de problemas (por exemplo a mãe, os avós, um treinador desportivo, etc).
2. Apesar de algumas crianças que conseguiram resistir ao apelo dos gangues terem passado por uma situação de desemprego, no momento em que foram entrevistadas todas tinham empregos ou desenvolviam trabalhos remunerados.
3. Todas as crianças entrevistadas estavam a estudar ou a seguir um tipo de formação profissional.
4. Todas as crianças em questão tinham igualmente sofrido alguma forma de violência, o que os poderia ter levado a juntar-se a um gangue. Contudo, alguns acontecimentos impediram-nas de o fazer. Por exemplo, o desejo de permanecer vivo por forma a poder tomar conta de um membro mais novo da família – um irmão ou uma irmã. Ou então o facto de terem presenciado a morte de um amigo ou membro da família – ocorrida pelo facto de essa pessoa ser membro de um gangue.

O envolvimento de crianças em grupos armados organizados consiste num fenómeno em crescimento. Mas, por outro lado, também já existe um conjunto de projectos de sucesso a nível local, que nos mostram ser possível fazer face a este fenómenos através de medidas de prevenção e reabilitação. Os resultados alcançados também demonstram que estas técnicas de prevenção e reabilitação, quando aplicadas correctamente, podem ter muito mais sucesso do que a simples repressão.
Parece pois que o principal desafio consiste em fazer os governos e a polícia trabalharem com as organizações da sociedade civil, os representantes comunitários e igualmente com os próprios jovens para podermos pôr eficazmente termo ao fenómeno dos gangues juvenis, bem como às suas causas.

Catarina Albuquerque

Publicado no Jornal de Letras - Educação - 21 de Dezembro de 2005

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