Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

29.12.05
 
Sinais perturbadores
A história conta-se em poucas palavras; Andrew Wragg, cidadão do Reino Unido
e pai duma criança com a síndrome de Hunter ­ doença degenerativa causada
por défice enzimático ­ em Julho de 2004, quando o seu filho, Jacob, tinha
dez anos, dirigiu-se ao quarto deste e asfixiou-o com uma almofada. A mãe da
criança, levou o irmão saudável para casa da avó a pedido do marido na noite
da morte de Jacob.
Após o julgamento, o júri não conseguiu chegar a um veredicto e a juiza
declarou Andrew Wragg inocente da acusação de homicídio mas culpado de
homicídio involuntário, pelo que apanhou dois anos de pena suspensa. A juiza
considerou a mãe de Jacob cúmplice, apesar desta o negar e até considerar a
sentença chocante pois sanciona a condição de Jacob como desculpa para este
crime.
Jacob ainda poderia viver mais uns anos e o Pai disse que tinha visto nos
olhos do filho o desejo de morrer.
Na minha vida profissional como professor e director duma escola ­ vai para
30 anos ­ tenho visto com apreensão que, cada vez mais, os pais não
conseguem (ou não querem, ou nem sequer lhes passa pela cabeça) que os
filhos aprendam lidar com a adversidade. E isto é, obviamente, muito
preocupante pois fácil é imaginar o que será Portugal daqui a uns anos com
uma geração assim criada a tomar conta dos seus destinos. O que seremos nós
como nação, o que seremos nós como sociedade? Ora nunca pensei, nem nos meus
sonhos mais delirantes, que um pai não consiga lidar com a adversidade e
sendo esta a doença do seu filho, resolva o problema matando o filho. Este é
o sinal da completa falência de valores. É o egoismo no estado puro
consubstanciado no brutal assassínio duma criança de 10 anos ­ o próprio
filho. Jacob estava a dar muito trabalho e o frágil pai, não sabendo lidar
com a situação mata-o.
É grave é muito grave, mas, mais grave é a decisão do tribunal. A ligeireza
da pena é reflexo do julgamento que a própria sociedade faz deste crime. No
big deal. O que seremos nós como planeta, o que seremos nós como humanidade?
Por cá mereceu um artigo na página 29 dum jornal na secção sociedade e
nenhum canal televisivo se referiu a este assunto.
Por cá a informação continua a falar dum País que não existe, por cá ninguém
se incomodou e viva a telenovela.

João Rangel de Lima

28.12.05
 
O envolvimento de crianças em actos de violência praticados por gangues*
Quando falamos de violência e de direitos da criança estamos primacialmente a pensar em actos de violência perpetrados por adultos em que as vítimas são crianças. Mas há também situações em que as crianças são, não só vítimas de violência, mas também seus autores , nomeadamente enquanto membros de gangues organizados. Na Europa, a taxa de violência juvenil aumentou de forma acentuada em meados dos anos 80, início dos anos 90. Nalguns países os números oficiais apontam para um crescimento da ordem dos 50 a 100 por cento.

Certos elementos permitir-nos-ão perceber melhor o funcionamento dos gangues, sua dinâmica, forma e razões pelas quais alguns jovens se sentem atraídos por eles enquanto outros conseguem resistir à tentação desses gangues. Finalmente, iremos passar em revista alguns exemplos de boas práticas para lidar com este fenómeno.
Apesar de não existir nenhuma definição unanimemente aceite de gangue, podemos considerá-lo uma «organização criada na rua e composta pelos socialmente excluídos ou pelos membros alienados ou desmoralizados de uma sociedade em que domina outro grupo racial, étnico ou religioso.».
Alguns autores definem um gangue como uma associação organizada com um nome e símbolo próprios, líderança identificável, um território geograficamente determinado e um padrão de reunião regular. Segundo a Polícia Judiciária, em Portugal os gangues são extremamente voláteis e informais, sendo constituídos de maneira espontânea, o que cria muitas dificuldades às autoridades para lidarem com eles, devido à sua enorme capacidade de autoregeneração. No caso de estruturas soltas e informais, mesmo se alguns membros do gangue forem apanhados, algumas horas ou dias mais tarde o gangue já encontrou novos membros e está pronto para funcionar de novo.
Os factores de risco que podem promover o aparecimento de gangues incluiem designadamente a existência de enclaves urbanos de pobreza (que foram frequentemente vítimas de uma má política de urbanização);grande percentagem de jovens, níveis muito baixos de educação e taxas disproporcionadamente elevadas de desemprego ; ausência ou escassa presença de forças de segurança e de outros serviços públicos; aparelho estadual violento, que tende a agir de forma reactiva e repressiva; acesso a economias ilegais; e acesso a armas de pequeno calibre, que permite aos gangues dominarem territórios, populações e recursos.

Existem algumas características comuns nas histórias pessoais das crianças membros de gangues, nomeadamente em relação aos seus contextos familiars, educativos e económicos :

A maioria destas crianças são oriundas de famílias monoparentais, presenciam violência doméstica ou mantêm fracas relações no seio da família ou vivem em casas sobrelotadas sem condições de privacidade.

No que concerne ao contexto educativo, as crianças membros de gangues abandonaram a escola (voluntariamente ou por terem sido expulsas).

Em matéria de contexto económico, as áreas dominadas pelos gangues –urbanas ou rurais – são invariavelmente pobres. Quando solicitadas para descrever o estatuto familiar da sua família, quase todas as crianças entrevistadas, no âmbito de um estudo feito nos cinco continentes, afirmaram ser oriundas de famílias pobres ou relativamente pobres. Num estudo elaborado em Portugal sobre este assunto, as conclusões mostram que nestes casos as crianças não encontram um «modelo de sucesso» em casa. Os pais estão desempregados ou têm empregos subqualificados, trabalham durante muitas horas e auferem salários de miséria. A reacção destas crianças ou jovens consiste em procurar uma vida melhor, diferente e mais fácil – e para eles a solução consiste em juntar-se a um gangue.
Um estudo realizado numa favela do Rio de Janeiro aponta para os seguintes quatro factores que permitem às crianças resistir aos gangues :
1. Apesar de as crianças em questão serem igualmente oriundas de famílias desestruturadas ou monoparentais, todas elas possuíam uma pessoa de referência presente, isto é, uma pessoa à qual as crianças se podem dirigir em caso de problemas (por exemplo a mãe, os avós, um treinador desportivo, etc).
2. Apesar de algumas crianças que conseguiram resistir ao apelo dos gangues terem passado por uma situação de desemprego, no momento em que foram entrevistadas todas tinham empregos ou desenvolviam trabalhos remunerados.
3. Todas as crianças entrevistadas estavam a estudar ou a seguir um tipo de formação profissional.
4. Todas as crianças em questão tinham igualmente sofrido alguma forma de violência, o que os poderia ter levado a juntar-se a um gangue. Contudo, alguns acontecimentos impediram-nas de o fazer. Por exemplo, o desejo de permanecer vivo por forma a poder tomar conta de um membro mais novo da família – um irmão ou uma irmã. Ou então o facto de terem presenciado a morte de um amigo ou membro da família – ocorrida pelo facto de essa pessoa ser membro de um gangue.

O envolvimento de crianças em grupos armados organizados consiste num fenómeno em crescimento. Mas, por outro lado, também já existe um conjunto de projectos de sucesso a nível local, que nos mostram ser possível fazer face a este fenómenos através de medidas de prevenção e reabilitação. Os resultados alcançados também demonstram que estas técnicas de prevenção e reabilitação, quando aplicadas correctamente, podem ter muito mais sucesso do que a simples repressão.
Parece pois que o principal desafio consiste em fazer os governos e a polícia trabalharem com as organizações da sociedade civil, os representantes comunitários e igualmente com os próprios jovens para podermos pôr eficazmente termo ao fenómeno dos gangues juvenis, bem como às suas causas.

Catarina Albuquerque

Publicado no Jornal de Letras - Educação - 21 de Dezembro de 2005

 
Comunidades sem violência
Prevenir a exploração e o tráfico
O tráfico de pessoas atingiu uma dimensão assustadora. Calcula-se em 2.4 milhões o número de pessoas traficadas em todo o mundo para exploração do trabalho (32%), sexual (43%) ou tráfico de órgãos, números inseguros, dada a natureza clandestina destas actividades.
Trata-se de um negócio hoje comparável ao tráfico de droga, movimentando cifras que o tornam naturalmente atractivo para gente sem escrúpulos que consegue, com meios sofisticados e apoiada em redes de crime organizado, resistir à acção das polícias e das organizações internacionais.
O tráfico de mulheres e crianças tem vindo a crescer no interior dos próprios países e destina-se principalmente a alimentar redes de prostituição e comércio de pornografia. O tráfico de homens adultos fornece sobretudo o mercado de trabalho escravo que se pratica em alguns países.
Neste ponto é particularmente importante atender à distinção entre imigração ilegal e tráfico de pessoas para exploração. A confusão entre estas situações tem levado a políticas erradas que, negando protecção às vítimas, conduzem à sua repatriação automática, colocando-as de novo à mercê das redes de traficantes que as mantêm em situação de verdadeira escravatura.
Os Estados devem, perante este cenário, apressar a dotação da suas ordens jurídicas de instrumentos de reacção que lhes forneçam bases comuns a partir das quais se possa garantir uma verdadeira cooperação. Nesse sentido, é muito importante que todos os Estados ratifiquem a Convenção das Nações Unidas Contra a Criminalidade Organizada Transnacional, conhecida por Convenção de Palermo, em vigor desde 29 de Setembro de 2003, bem como o seu Protocolo Adicional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, que vigora desde 25 de Dezembro do mesmo ano, instrumentos ainda não ratificados por países como Angola, Costa do Marfim, Cuba, República Dominicana, República Checa, Grécia, ou Índia, entre muitos outros.
As causas do tráfico estão identificadas: pobreza, exclusão, discriminação, ausência de protecção social. As políticas de combate nunca serão eficazes baseando-se apenas na repressão dos traficantes. Haverá sempre quem esteja disposto a arriscar a entrada num negócio tão lucrativo, conhecida que é a dificuldade de dominar estas redes e a sua muito provável impunidade. Por isso, o tráfico de pessoas só se erradicará com o fim da miséria que lhe dá origem.
Perante isto, que poderá a comunidade fazer para proteger os mais vulneráveis, designadamente as crianças, deste risco? A resposta é consensual: prevenir. Prevenir na comunidade, criando apoios e formas de integração das crianças que vivem nas ruas e que estão ao alcance de qualquer traficante. Prevenir na escola, onde é fundamental criar mecanismos de controle da entrada e saída de crianças e adultos e ensinar às crianças os perigos a que poderão ficar sujeitas. Prevenir em casa, estando atento à deambulação das crianças na internet, em que inocentes contactos terminam frequentemente em situações de risco.
E depois, quando uma vítima de tráfico se cruzar connosco, será preciso aprender a ler os sinais do seu silêncio, do seu disfarce mantido tantas vezes sob coacção e ter a capacidade de a encarar e ajudar como vítima que é, não obstante esse estatuto não ser ainda reconhecido por muitos.
Teresa Morais
Adjunta do Gabinete do Provedor de Justiça

Publicado no Jornal de Letras - Educação - 21 de Dezembro de 2005

26.12.05
 
ACABAR COM A VIOLENCIA CONTRA AS CRIANÇAS – JÁ !
A violência esteve de novo em foco ao longo de 2005. E se eram jovens os incendiários dos subúrbios de Paris, jovens eram – são – também as principais vítimas de maus tratos em qualquer contexto: na rua, na escola, nos internatos e, sobretudo, em casa. O que a ONU, o Conselho da Europa e outras organizações internacionais pensam é que esses casos fatais de que se fala – e que em Portugal deram pelo nome de Joana, Vanessa ou Francisco – são apenas a “ponta do iceberg” duma cultura de violência que se exerce quotidianamente contra os mais fracos dos fracos.
Por isso, está na agenda internacional uma campanha intitulada “Act now! Stop violence against children”.

Partindo da constatação de que a violência contra crianças é uma realidade com consequências gravíssimas na vida e no desenvolvimento das crianças em todo o mundo mas também que é pouco visível, pouco conhecida e pouco estudada, a ONU iniciou um primeiro estudo mundial sobre a violência contra as crianças, cujos objectivos são :

. sensibilizar a comunidade internacional para todas as formas de violência contra crianças;
. compreender melhor as causas do problema e o seu impacto nas crianças e nas sociedades ;
. avaliar e melhorar as políticas e os mecanismos existentes para prevenir a violência contra as crianças e para lidar com ela quando não se consegue impedi-la;
. delinear um plano de acção internacional para acabar eficazmente com estes abusos.

Contribuindo para este estudo, o Centro de Investigação Innocenti da UNICEF preparou uma análise da investigação europeia sobre o tema que foi publicada com o título Violence against children in Europe – A preliminary review of research, Junho 2005.
Com base nas disposições da Convenção sobre os Direitos da Criança, o conceito de “violência” refere-se a todas as formas de violência física e mental, maus tratos, tratamento negligente, incluindo abuso sexual, “bullying” nas escolas e castigos corporais em todos os contextos.
Essa revisão da literatura científica existente nos vários países concluiu pela sua difícil comparabilidade, falta de dados inclusive estatísticos (geralmente revelando apenas os casos de violência extrema), uma visão excessivamente compartimentada e a falta de auscultação das próprias crianças.
Por seu lado, o Conselho da Europa lançou um Programa de Acção para o triénio 2005 a 2007, intitulado “Infância e Violência”, que visa apoiar os Estados membros a porem em prática os compromissos jurídicos internacionais assumidos, designadamente o desenvolvimento de políticas nacionais interdisciplinares de prevenção e estratégias de protecção da infância.
Este Programa de Acção assenta nos seguintes pressupostos e fundamentos:
- as crianças não são “mini-pessoas com mini-direitos”, isto é, as crianças não só devem ser objecto de cuidados e de uma protecção especial mas também devem ser reconhecidas como detentoras de direitos legais.
- “As crianças primeiro” significa reconhecer a sua vulnerabilidade e colocá-las no centro das políticas públicas, o que implica dar-lhes a oportunidade de serem ouvidas e tidas em conta como cidadãos activos e sujeitos de direitos.
- A violência é uma realidade multidimensional. O Programa de Acção abordará o conjunto das situações de violência (na escola, na família, nas instituições, na comunidade...) assim como os diferentes papéis desempenhados pelas crianças em cada situação (como vítimas, como responsáveis por actos de violência e como actores e parceiros na prevenção).
- A luta contra a violência em relação às crianças requer uma abordagem interdisciplinar e integrada de protecção dos direitos da criança, o que implica nomeadamente coordenação e cooperação entre instâncias públicas e privadas, nos domínios jurídicos, sociais, educativos e de saúde, bem como entre acções a nível internacional, nacional, regional e local.

Assim, pareceu interessante e útil reunir nesta Página das Inquietações Pedagógicas pontos de vista de representantes de várias instâncias “não escolares” que lidam com o problema (e que integraram, como eu, a delegação portuguesa à Conferência Internacional para o estudo da ONU - consulta regional Europa/Ásia Central) :
Teresa Morais, da Provedoria de Justiça, debruça-se sobre os problemas bem graves das crianças vítimas de tráfico e das crianças institucionalizadas, defendendo que o isolamento potencia a violação dos seus direitos e que os professores destas crianças estão num “posto privilegiado de observação”, podendo “aprender a ler os sinais do seu silêncio” e a contribuir significativamente para o seu desenvolvimento como cidadãos.
Catarina Albuquerque, do Gabinete de Direito Comparado do Ministério da Justiça, debate o fenómeno dos gangues.
Finalmente, Joaquina Cadete, directora do Programa para a Prevenção e Eliminação da Exploração do Trabalho Infantil (PETI) do Ministério do Trabalho e da Segurança Social, reflecte sobre as formas que pode tomar a violência psicológica na escola, designadamente os comportamentos discriminatórios e excluidores e defende o recurso a medidas de excepção para combater o insucesso e a desmotivação.
Trata-se de casos extremos estes, mas que existem e requerem ser prevenidos, enfrentados, tratados, combatidos. Por isso estes olhares exteriores à escola mas que vêem nela um parceiro privilegiado e no professor um colaborador precioso.

E se estes casos forem a tal ponta do iceberg duma cultura de violência, como pode a escola colaborar para "acabar com a violência contra as crianças"? Instituir na sua organização e no seu currículo uma cultura de não violência, uma gestão participada e uma disciplina construtiva são propostas a que voltaremos numa próxima oportunidade.

Maria Emília Brederode Santos
Conselho Nacional de Educação

Publicado no Jornal de Letras - Educação a 21 de Dezembro de 2005

20.12.05
 
GERIR O TEMPO
O tempo é o recurso mais valioso que gerimos nas nossas vidas e, como todos os recursos valiosos é escasso. Por isso, a forma como são geridos os tempos de trabalho escolar, dentro e fora da escola, é uma questão decisiva em termos de resultados da acção educativa.
Muitos são os “gestores” responsáveis por estes tempos: os estudantes e seus encarregados de educação que decidem a forma como organizam os tempos não escolares de aprendizagem; os professores que gerem os tempos de trabalho na aula; as direcções das escolas que organizam os horários escolares de alunos e professores; e finalmente os decisores da política educativa que definem o currículo nacional, o calendário escolar e as regras de prestação de serviço dos professores.
Para atingir um bom resultado final, em termos de aprendizagens realizadas, é necessário que estas diferentes gestões do tempo sejam adequadas. Não existe uma fórmula única de definição do que é adequado, como todos sabemos da nossa experiência de gestão do tempo de trabalho escolar, enquanto estudantes ou pais. Existem, contudo, certas formas de gestão do tempo que conduzem ao insucesso, o que reforça as exigências relativamente à atenção a prestar a este problema.
Em relação às margens de tempo globalmente destinadas ao trabalho escolar, se verificarmos o que se passa nos países da EU, constatamos uma grande diversidade dos tempos mínimos reservados às actividades lectivas.
Para os alunos do 1º ciclo, o número mínimo de horas anuais de trabalho na sala de aula vai desde as 478h (Letónia) até às 980h (Itália) [2]. Portugal situa-se acima da média europeia, com um total de 910h de presença em classe dos alunos do 1°ciclo. Devemos ter em consideração que estas horas lectivas não dizem respeito a outras actividades educativas a que as crianças têm acesso no âmbito da sua escolaridade e que também variam fortemente consoante os países.
Uma outra medida do tempo escolar é a que diz respeito ao número de dias em que as crianças têm aulas. No 1º ciclo, o total de dias de escola varia, na UE, entre os 155 dias por ano, na Bulgária, e os 216, no Luxemburgo. A duração mais comum situa-se entre 175 e 190 dias, adoptada por 22 países, entre os quais Portugal, com 180 dias de actividade escolar.
No que diz respeito aos tempos de trabalho dos professores, dentro e fora da escola, as variações também são grandes. Vinte países fixam um número total de horas de trabalho semanal, incluindo trabalho realizado dentro e fora da escola, neste último caso, de preparação de aulas e de correcção de trabalhos. Para os professores dos diferentes graus de ensino não-superior esse quantitativo global é o seguinte:
Número total de horas de trabalho semanal dos professores
Horas semanais
Países
42,9 a 48,2[3]
Islândia
45
Suécia
40
Alemanha, Áustria, Bulgária, Eslovénia, Eslováquia, Hungria, República Checa, Letónia, Luxemburgo, Polónia e Roménia
37
Dinamarca e Espanha
35
Estónia, França, Portugal e Reino-Unido-Escócia
34
Lituânia

O que todos os países fixam é o número de períodos de ensino, geralmente semanal e por vezes anual, e a sua duração. Por norma, em cada país, o horário lectivo do professor varia consoante o nível de ensino e, por vezes também com o estatuto profissional do docente. Sem entrar em detalhes excessivos, podemos afirmar que a maioria dos professores europeus está em presença da(s) sua(s) turma(s) entre 18 e 20 horas por semana.
Alguns países fixam um número preciso de horas semanais de disponibilidade dos professores na escola, para além dos períodos lectivos, sendo mais frequente que este tipo de obrigação seja previsto em dias de trabalho por ano. Nos casos em que essa presença está estipulada, ela pode variar, segundo os níveis de ensino, e também de acordo com as decisões de cada escola. Para os países que indicaram ter esse tipo de obrigação prevista no contracto de trabalho dos professores, ou na legislação, são os seguintes os limites horários previstos:
Número de horas lectivas e de presença dos professores na escola (semanais)
Países
Horas lectivas semanais
(excluindo as pausas)
Total de horas semanais na escola
CITE 1
CITE 2
CITE 3
CITE 1
CITE 2
CITE 3
Ensino primário
Ensino secundário inferior
Ensino secundário superior
Ensino primário
Ensino secundário inferior
Ensino secundário superior
Finlândia
17,3
12,8 a 17,3
11,3 a 16,5
25
19 a 25
17 a 27
Espanha
22,9
16,5 a 19,3
16,5 a 19,3
30
Grécia
17,7
15,8
15,8
30
Islândia
18,7
18,7
16
33,5
33,5
25,4
Letónia
16,5
13,5
13,5
30,5
27
27
Noruega
19,5
15,9 a 18,8
12,2 a 17,6
30,1
25,5 a 29,1
20,8 a 27,7
Portugal
22[4]
35[5]

O que as estatísticas educacionais não nos podem indicar é a forma como são geridos estes diferentes tempos e é aí que reside o fundamental das diferenças em termos de resultados educativos. De facto, no quadro seguinte, em que reunimos os dados referentes ao tempo de trabalho na escola de alunos e professores, relativos ao ensino secundário inferior, podemos constatar que países com desempenhos tão diferentes em termos educativos como a Finlândia e Portugal apresentam margens horárias de trabalho escolar muito semelhantes. É de realçar que o desempenho dos alunos finlandeses tem sido, repetidamente, o melhor em avaliações internacionais (como é o caso do projecto PISA, no âmbito da OCDE) enquanto os alunos portugueses apresentam globalmente resultados bastante fracos.
Tempos escolares de alunos e professores (CITE 2: ensino secundário inferior[6])
Países
Número de dias de actividade escolar
N°de períodos semanais de trabalho lectivo dos professores
N°horas de presença de professores na escola (total semanal)
N° horas anuais dos alunos em classe
Luxemburgo
216
21
-
900
Dinamarca
200
26
37
910
Finlândia
190
De 17 a 23
29
855
Portugal
180
22
35[7]
930
Espanha
175
De 18 a 21
30
1 050

É por isso que a questão da gestão do tempo é essencial: socorrendo-nos de experiências e práticas doutros lugares, poderíamos concluir que é necessário, no caso nacional, uma maior consciencialização das responsabilidades existentes, aos diferentes níveis, na gestão adequada do tempo, que tendemos a valorizar só quando nos faz falta. Destacaremos, nestas responsabilidades, o dever dos estudantes de dedicar uma margem horária suficiente ao estudo fora da escola, o dos professores de rentabilizar os tempos lectivos em termos de aprendizagem e a responsabilidade das escolas em proporcionarem a alunos e professores horários de trabalho e condições adequadas à consecução dos objectivos educacionais.
Diferentes histórias nacionais explicam a configuração específica que os tempos escolares assumiram nos diferentes países. Estas configurações não são imutáveis e, como quadros globais de definição do tempo e do espaço da escola, têm de se adaptar às novas funções que a escola desempenha. Cabe aos diferentes parceiros sociais envolvidos encontrar os equilíbrios necessários a uma gestão educativa dos tempos escolares.

Beatriz Bettencourt[1]

[1] Professora e investigadora na área da Administração da Educação
[2] Todos os dados apresentados são referentes ao ano escolar 2002/2003 e são retirados do documento: Eurydice (2005). Education at a Glance, disponível em http://www.eurydice.org/Documents/cc/2005/fr/FrameSet.htm.
[3] A variação existente na Islândia é em função do nível de ensino.
[4] No CITE 1 (1º ciclo do ensino básico) o tempo de ensino indicado, em nota, no documento da Eurydice é de 25 horas semanais com uma pausa de 20 minutos por dia. No caso de Portugal, nos restantes ciclos e níveis de ensino não foram deduzidas as pausas.
[5] Aparece no documento como nº de horas semanais de presença na escola, embora inclua o trabalho individual, que pode ser realizado fora da escola.
[6] No caso português o Ensino secundário inferior compreende os segundo e terceiro ciclos do Ensino Básico.
[7] Tal como referimos, é este o n° de horas indicado no documento citado como de presença na escola, apesar de incluir o trabalho individual.

18.12.05
 
Acabar com a violência contra as crianças - já !
É já para a semana que sai o Jornal de Letras com a Página das Inquietações Pedagógicas. Desta vez o tema é a violência contra as crianças (infelizmente duma chocante actualidade) e a campanha da ONU para acabar com ela, a nível mundial, e nos vários contextos em que ela tem lugar, começando pela casa das crianças mas incluindo também a comunidade, os orfanatos e outras instituições. A escola aparece como refúgio, como possível ponto de observação mas também como local de violência física e psicológica.

Maria Emília Brederode Santos

12.12.05
 
A EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR E A AUTONOMIA DAS ESCOLAS
A EDUCAÇÃO PRÉ-ESCOLAR E A AUTONOMIA DAS ESCOLAS

Com a publicação e progressiva implementação do Decreto-Lei 115-A que, em 1998, estabeleceu a autonomia das escolas e a constituição dos Agrupamentos, abriu-se uma nova porta à educação pré-escolar.
De facto, a inclusão dos jardins de infância nos Agrupamentos veio consolidar a educação pré-escolar como parte integrante do ensino básico e os educadores de infância como docentes. Ao mesmo tempo, veio criar novas oportunidades, quer para o estabelecimento de redes de comunicação entre educadores e professores, facilitando um mútuo conhecimento e entendimento profissional, quer para proporcionar às crianças e familiares a continuidade educativa desejada e uma escolaridade coerente e integrada, ainda que diferente em cada etapa.
No entanto, nem tudo tem acontecido conforme o pretendido e há ainda um longo caminho a percorrer. A comunicação entre professores e educadores continua a ser dificilmente estabelecida; entre eles não há ainda a confiança indispensável ao melhor funcionamento da escola. Existindo ainda uma marca e sobretudo um passado profissional distinto entre os vários corpos profissionais que aí trabalham, a constituição de um governo da escola que não tivesse que correspondesse necessariamente a esses diferentes grupos, mas que traduzisse uma concepção do corpo docente entendido como um corpo único, foi considerado, na altura da elaboração do dec-lei 115/98, uma meta desejável mas permatura.
Assim e embora,por lei, os educadores de infância tenham lugar no governo dos Agrupamentos, eles não o têm querido, ou não o têm podido, ocupar. E, estando os educadores em minoria entre os docentes, dificilmente criam, o espaço necessário para fazer vingar os seus princípios e os princípios da educação pré-escolar. Além do mais, vêem, em muitos casos, complicar-se burocraticamente o dia-a-dia no jardim de infância. O que dantes se resolvia de imediato, no pequeno jardim de infância, agora necessita de mais tempo para obter a aprovação do topo... e, muitas vezes, ou porque essa aprovação tarda, ou por falta do entendimento necessário, as suas pretensões, e as das crianças, ficam por satisfazer.
Parece, então, ser forçoso que os educadores, desde já, ocupando o(s) lugar(es) a que têm direito na escola, não abandonem as suas convicções e aprendam a explicitá-las e a explicá-las; que os professores compreendam e aceitem o processo de ensino-aprendizagem que ocorre no jardim de infância; e que os professores e os educadores dialoguem entre si para aprenderem e colherem o melhor de cada um, e construírem e oferecerem a necessária coerência educativa.
O processo de autonomia das escolas, exige, por isso mesmo, a construção de uma linguagem comum entre todos os actores em beneficio das crianças e dos jovens ultrapassando-se, assim, uma visão da educação pulverizada e atomizada em escolas e escolinhas cada uma com os seus donos.
Luísa Homem

Publicado no Jornal de Letras - Educação

7.12.05
 
Com a devida vénia a Kafka
Luísa viu-se, no seu sonho, no centro de uma sala de paredes nuas e frias deparedes altíssimas. Um som de passos uma colega. Temos a reunião do projecto curricular. Linhas prioritárias de actuação, como trabalhamos?, construção do projecto curricular de turma. Turma? Tenho cinco turmas de Português. 150 alunos. 5 linhas prioritárias de actuação, 5 planificações de actividades, 5 construções dos projectos curriculares, 5 reuniões de grupo disciplinar vezes o número de vezes que as teremos que fazer e escrever. Tudo escrito caros Colegas! Tem que ficar escrito. se vier cá o inspector quer ver. E as áreas curriculares não disciplinares (vezes cinco) e a promoção de práticas pedagógicas que desenvolvam nos alunos métodos de trabalho (vezes cinco) e a implementação vertical e horizontal dos currículos(vezes cinco) e a articulação entre o básico e secundário (vezes cinco). A sala ia-se enchendode bocas que falavam e cada uma debitava. Eu nesta turma acho que deveríamos arranjar, com a colaboração do colega de Visual, uma exposição de sólidos platónicos, eu acho que deveríamos fazer um trabalho a partir do livro de Ilse Losa com o professor de História com ilustrações feitas pela Educ.Visual e depois faríamos uma exposição. Luisa começou a fazer quadros de dupla entrada freneticamente em que estas propostas iam entrando numa onda cada vez mais avassaladora e os quadros nunca eram demais , mesmo feitos acomputador, os seus dedos mexiam-se freneticamente e o número de bocas ia aumentando ocupando toda a sala, e a distribuição da carga horária e a distribuição do serviço docente. de repente todas as bocas se calaram e entrou um sujeito muito alto e esguio vestido de preto que falouem voz monocórdica e metálica. Reunião do Plano Anual de actividades. Um quadro com Coordenadas gerais, Objectivos, Actividades, Recursos, Calendarização eAvaliação. Há 3 coordenadas vezes 8 departamentos 1 serviço especializado de apoio educativo, 3 x 9 = 27. 27 entradas vezes 6 colunas, 162 células de texto. Agora as células ganhavam vida e engordavam engolindo cada vez mais palavras. E se tivermos que alterar isto ao longo do ano? Tudo parou. Abruptamente instalou-se um silêncio pesado. O senhor vestido de preto falou. Nada disto se altera. Isto é como um plano quinquenal só que é anual. Nada se altera e se alguma coisa o obrigar a mudar, muda-se a coisa mas oplano fica. E as bocas voltaram ao seu falar frenético. Luisa timidamente.Tenho alunos nas minhas cinco turmas que não evoluem. Aplica-se o despacho normativo 50/2005. Para cada aluno fazer um plano de recuperação, com pedagogia diferenciada na sala de aula, programas de tutoria, actividades de compensação, aulas de recuperação, actividades de ensino específico de língua portuguesa e há também os planos de acompanhamento e se for um aluno de retenção repetida então teremos que ver o processo individual do aluno,os apoios e actividades de enriquecimento curricular e planos aplicados e os contactos estabelecidos com os enccarregados de educação e o parecer dosserviços de psicologia e a proposta de encaminhamento do aluno para um planode acompanhamento e há ainda a programação individualizada e o itinerário deformação do aluno com o acordo prévio do encarregado de educação. E tudoescrito. Tenho cerca de dez alunos por turma nessas condições. Os números bailavam à frente dos olhos de Luísa 10 x 5 + 10 x 50. 100 itens, 100 folhas escritas. As 100 folhas transformavam-se em 200, em 300 e Luisa quase sufocava à medida que ia tentando manter-se à tona naquele mar de folhas. Luisa esbacejava e gritava. Mas que plano para os alunos que me chegaram à turma do 7º ano e que não sabem ler? E os que têm pais presos. E os que vivem na barraca com pais toxicodependentes? Luisa gritava cada vez mais e esbracejava freneticamente e as folhas continuavam a cair. Uma boca enormegritava-lhe. Preencher modelo 024/36/2004 da editorial do ministério e se for aluno com deficiência, modelo 098/34//2005. Atenção que neste caso temque ter a aprovação do Enc. de Educação e vai depois à Direcção regional. Lentamente a agitação foi diminuindo e Luisa, exausta, estendeu-se no cimo de uma imensa pilha de papéis. Lentamente insinuaram-se os mapas estatísticos do GIASE. A secretaria não pode fazer isto tudo. Os colegas têm que preencher isto para cada turma, número de crianças a frequentar, segundo a vez de inscrição, por idade e sexo, número de crianças a frequentar, segundo a idade e sexo e país de origem e segundo o ano de escolaridade, poridade e sexo, e segundo ano de escolaridade por língua estrangeira e por área curricular disciplinar de frequência facultativa e por educação artística e tecnológica e por grupo cultural e étnico. E os números iam fluindo por cabo para dezenas de computadores centrais onde funcionários comenormes mangas de alpaca sorridentes sem se mexerem viam entrar a torrentede dados que meticulosamente deitavam fora. Finalmente, no topo da sala, Luisa pôde olhar lá para fora e viu um aluno que olhava sem expressão para aquela torre donde esvoaçavam papéis. O aluno deteve-se ainda algum tempo e, depois, virou costas e foi-se embora. Lentamente.

João Rangel de Lima