Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

12.7.07
 
PELA FILOSOFIA
João Santos*

«Do mesmo modo se verá claramente que é muito contra a natureza da Filosofia que ela seja uma arte de ganhar o pão, na medida em que contraria a sua condição essencial o conformar-se com a ilusão da procura e com a lei da moda, e só a necessidade, cujo poder se exerce ainda sobre a Filosofia, pode obrigá-la a sujeitar-se à forma comummente aprovada»
Kant, trad. Leonel Ribeiro dos Santos, Revista Filosofia, Vol. II, 1/2, 1988, p. 176
A última vez que, nesta breve democracia, se discutiu o estatuto da filosofia no ensino secundário com algum vigor não foi, ao contrário do que se possa pensar, em 2006, a propósito da alteração ao regime de avaliação do ensino secundário ou da suspensão das Orientações de Leccionação do Programa de Filosofia.
O apelo quase inaudível de alguns, a inteira imobilidade da grande massa e um eco discretíssimo nos jornais, aí estão para mostrar a pouca receptividade da opinião ao sobressalto de exígua parcela da Universidade.
Na verdade, a dificuldade de pensar, hoje, em termos que vão além da simples e inane demanda de exame, a situação da filosofia no secundário tem raízes mais fundas do que pretende quem se limita a ver no fim anunciado da disciplina um esquecimento culposo das humanidades, ou na avisada eliminação do exame de 11º ano um laxismo-rousseauismo-construtivismo de esquerdíssima confecção.
O ensino da filosofia conheceu, nos últimos 30 anos, vários momentos de viragem com algum relevo. Em 1976-7, a filosofia ainda era ensinada apenas no hoje chamado 11º ano, então 2º ano do curso complementar dos liceus, sendo o 1º dedicado à Psicologia. Em 78-79, com a unificação dos ensinos liceal e técnico, nascem os cursos complementares do ensino secundário. A filosofia integra a componente de formação geral de todos os cursos e é ensinada, como disciplina autónoma, ao longo de dois anos (10º e 11º). No início da década seguinte, com a conversão do Ano Propedêutico em 12º ano, o ensino da filosofia conhece uma extensão relevante, nomeadamente na óptica dos conteúdos programáticos, sendo oferecida, com carácter obrigatório, no 3º curso da via de ensino.
Quando, em 89, é aprovado o Decreto-Lei nº 286/89, já o 12º ano adquirira, formalmente (LBSE, 1986), o estatuto de ano terminal do ensino secundário, mas restava vê-lo integrar, de pleno direito, este ciclo de estudos. Ao ser-lhe atribuída uma carga horária próxima da estabelecida para os dois primeiros anos, o 12º ano perde, definitivamente, o carácter de ‘ano propedêutico’ que até aí detivera, para se lhes assemelhar em tudo. Em tudo, sobretudo no que não interessava. Em lugar de constituir o ‘cume da abóbada’, o lugar da concentração e da síntese, o complexo jogo envolvendo as pretensões territoriais das diferentes disciplinas, a sempre imprudente gestão das cadeiras de opção e, caso singularíssimo, o estatuto particular das línguas e respectivas precedências, não permitiu que o secundário (em Portugal, apenas o que noutros países é ciclo terminal, upper secondary) e, neste, o 12º ano, adquirissem a estabilidade e a coerência ambicionadas.
Mas, no interior da reforma Roberto Carneiro, a ‘reforma Fraústo’ (currículo), com a proposta de programa subscrita pela equipa de Manuel Maria Carrilho, traz consigo a promessa de uma ruptura nos hábitos, nos léxicos, nas mundividências profissionais, nas bibliografias, que poderia ter resgatado, assim o pensaram alguns, não apenas o ensino da filosofia, como, em larga medida, o conjunto das formações secundárias, da improfícua, desconcertada e desconcertante proliferação de ofertas avulso no campo das ‘ciências humanas e sociais’. Quase duas décadas depois de vetado por uma boa parte da Universidade e dos professores do secundário, o programa Carrilho aí está como um excelente exemplo de que é possível ter visão e perder. Derrota sobremaneira injusta quando contrastada com as alterações subsequentes e com o formato programático adoptado para o 12º ano.
Com o virar do milénio, não é só a perda do 12º ano (perda, em boa verdade, sobretudo simbólica) que devemos assinalar, nem o suposto retrocesso representado pela ‘extinção’ do exame do 11º ano, nem a suspensão das Orientações..., piedosamente descritas como «documentos que introduzem conteúdos científicos sérios num programa que carece deles»[1].
Para ser breve: o que se vem dissipando é, em primeiro lugar, a memória, e com ela a hipótese de uma narrativa coerente e de um projecto educativo que lhe corresponda. Mas, em segundo lugar, não se vislumbra a vontade de um tal projecto.
Por isso, a defesa da filosofia no ensino secundário terá de ser um pouco mais articulada e plural. Para ser bem sucedida, terá de ser fruto de um movimento cultural e profissional muito amplo, associado à indagação colectiva sobre o lugar, função e propósito do trabalho filosófico. Por enquanto, o que se vai observando é quase o contrário disso.
Por um lado, são os não profissionais quem mais facilmente ‘explica’ quão útil e relevante é a filosofia, e por que razão deve ser poupada à morte que se lhe antecipa. Que ou qual morte, com efeito, não pode deixar de merecer, se não encontra já um modo próprio de se descrever e fazer impregnar pelas instituições, e não só as de educação secundária. O tom de nostalgia culta, na verdade, dificilmente supre a inexistente reflexão e a ofuscada memória.
Por outro lado, é uma pequena parte dos professores, recém-chegada a uma convivência mais próxima com os poderes do dia (agora experimentando uma bizarra viuvez em relação ao ministério David Justino), a crer-se portadora do aggiornamento por que todos deveríamos esperar, e a rebelar-se intensamente quando se apercebe da inutilidade do seu esforço perante (1) a incerta pertinência e qualidade das alternativas que oferece, (2) a sempre pendente, e justa, interrogação sobre a legitimidade da representação de núcleos associativos que não conhecem meio-termo entre o pariato hereditário e a exangue condição de nuvem que se queria Juno, e, já agora, (3) o reconhecido conflito entre as tradições filosóficas insular e continental, e a sua incapacidade dogmática para co-protagonizar uma aufhebung produtiva (que alguns de nós julgámos entrever em 90).
Finalmente, e agora mais a sério, a inexistência de um discurso articulado, prudente, construído a partir da observação e da crítica do dispositivo curricular, das regras de avaliação, transição e precedências, da compreensão da diversidade dos contextos sociais de aprendizagem ou dos paradoxos da actual condição das humanidades, origina diagnósticos de curioso, que se quedam pelo sintoma e, com isso, mais não fazem do que multiplicar febres e alucinações em joana(o)s d’arc sempre em busca de sacrifícios redentores.
O combate pela filosofia na escola era, há um ano (dois, três...), indispensável e urgente como parte de um projecto – que é também o seu – de formação para uma cidadania universal, esclarecida pela razão. Hoje, ainda sem um plano, mas largamente amplificados os sinais de esvaziamento da esfera pública política, sem dúvida também por falta de uma cultura filosófica temperada no cepticismo e na crítica, torna-se porventura ainda mais importante defender a filosofia como parte da afirmação genérica da cidadania democrática e de uma educação orientada para o respeito pelos valores da justiça, da liberdade individual e do conhecimento.
O que não deveria surpreender-nos, em todo o caso, é o mesmo recorrente anúncio da morte por vir, pois é essa, em boa medida, a marca da sua condição originária (e uma das primeiras ‘anedotas’ que a tradição impõe). E que alguns de nós tenhamos aceite ignorá-lo, só revela imprudência de assalariado, não a menor importância da filosofia no processo civilizador que é, no fundo, todo o processo educativo.
Admita-se que a filosofia escolar não está, hoje, em posição de dar o seu melhor contributo para o programa recentemente fixado por Vasco Pulido Valente (VPV): fazer de toda a «criatura “instruída” [...] uma criatura “educada”, intelectualmente educada, pelo menos». E, muito menos, de responder sozinha à pergunta sobre a finalidade, o objectivo da educação – «para que se educa?» –, embora saibamos que «o que se educa é, afinal, um homem ou uma mulher para o que gostaríamos que eles fossem»[2]. Mas isso não impede que sustentemos ser a filosofia, ainda e cada vez mais, indispensável à formação de ‘criaturas educadas’, para usar a expeditiva fórmula de VPV.
Num texto clássico de Hannah Arendt fixa-se, com cristalina transparência, o programa perene para a escola, como instituição que faz a mediação entre a família e o mundo. E esse programa compreendem-no bem os filósofos e os professores de filosofia. Através da educação, sustenta Arendt, realizam-se três tarefas indissociáveis: introduzir a criança ao/no mundo, proteger a criança do mundo, proteger o mundo da vaga de novos recém-chegados que, a cada geração, nele é lançada. O educador é «responsável pelo mundo»:
«Frente à criança, é um pouco como se fosse um representante de todos os adultos, que lhe mostraria as coisas, dizendo: “Eis o nosso mundo.”»[3]
Ao assumir a responsabilidade pelo mundo, esse mundo que designa e vai revelando gradualmente, o educador compromete a criança, o jovem, com as gerações passadas, com o mundo presente, com a sua comunidade política.
É por isso que a defesa da filosofa não pode ser só relativa à escola. Ou só relativa aos exames, como dupla garantia – da seriedade do empreendimento educativo e do merecimento do ‘ganha-pão’. Ou só fundada numa pretensão à ‘cientificidade’ (noção tornada obscura e «violenta»[4], de tão insistente e indiscriminadamente usada) dos seus conteúdos. E não pode, seguramente, ser vinculada a uma só tradição, embora seja certo que também não pode deixar de se enraizar na língua e na história. Como disse o Prof. Cerqueira Gonçalves, «[n]enhuma linguagem melhor do que a natural, devido ao seu poder de articulação e de acumulação progressiva de sentido, se mostra capaz de construir a mais rica topografia do mundo, cumprindo assim a trajectória fundamental deste.»[5]
Por isso, é negar a natureza mesma da filosofia querer ignorar a sua íntima vinculação à língua materna, como campo de possibilidade e efectuação, nem que seja, do mero exercício escolar. Ou à inscrição temporal dos problemas e conceitos, e, por esta via, à história como corpo e carne da sua problematicidade, não obstante a indiscutível pertinência da objecção de Franco Alexandre: «ainda assim, será no presente atemporal definido pelas questões filosóficas que levantarmos e formularmos hoje que se jogará a dialéctica das teses»[6].
O combate pela filosofia, enquanto parte do combate pelo homem e mulher que gostaríamos que fossem, conduz à defesa do «direito à filosofia» como direito do jovem a um módico de proficiência, crítica, na utilização da língua materna e à imersão, crítica, no tempo e na história – no tempo humano.
Para Jacques Derrida, a materialização do direito à filosofia, «de um ponto de vista cosmopolítico», tem como consequência fundamental que uma política da filosofia não seja apenas «uma política da ciência e da técnica, mas uma política do pensamento que não ceda nem ao positivismo nem ao cientismo nem à epistemologia, e reencontre, à medida de novos desafios, na sua relação com a ciência, mas também com as religiões, mas também com o direito e a ética, uma experiência que seja simultaneamente de provocação ou de respeito, mas também de autonomia irredutível»[7].
O sentido de tal interpelação não é estranho aos professores. Mas os termos da sua concretização têm de ser obtidos numa disputa que deve abandonar o exíguo território ao qual se tem visto, nos últimos anos, dócil e debilmente confinada a apologia da filosofia na escola secundária
_________________________
*Professor do Ensino Secundário

[1] Desidério Murcho, «O Ministério Pimba da Educação», Público, 4.1.07
[2] Vasco Pulido Valente, «Que educação?», Público, 8.5.07
[3] «La crise de l’éducation», in La crise de la culture, idées/Gallimard, p. 243. Cf. a tradução de Olga Pombo, em Quatro textos excêntricos, Relógio d’ Água, 2000. A propósito deste texto, lembra OP ter sido publicado originalmente em inglês, no ano de 1957, com o título «The crisis in Education».
[4] Dizia Fernando Gil, a propósito da intolerância no campo filosófico: «Violência significa o contrário de defesa e refutação – significa não se sentir obrigado a argumentar suficientemente a tese própria e empurrar sistematicamente o adversário para a obrigação de justificar, ele, a sua posição – exactamente ao invés das regras do ónus da prova, tal como Aristóteles as fixou definitivamente». Acentos, INCM, 2005, p. 239.
[5] Fazer Filosofia – Como e Onde?, Braga, Faculdade de Filosofia da Universidade Católica, 1990.
[6] «Perspectivas e limites do ensino da filosofia», in Filosofia Vol. II, 1/2, 1988 (1986), p. 20
[7] Le droit à la philosophie du point de vue cosmopolitique, Éditions UNESCO, 1997, pp. 39-40.

Publicado pelo Jornal de Letras - Educação Junho 2007

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