Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

28.3.05
 
José Caldas acende a noite:
Pode a educação reconciliar-se com o coração selvagem ?

Depoimento de Maria Emília Brederode Santos



A mão pequenina aperta com força a da mãe. Hesita : morre de curiosidade de entrar na gigantesca boca do dragão e ver o que está para além dela; mas o medo paralisa-o. A mãe pega-lhe ao colo, avança dragão dentro enquanto o vai tranquilizando : “Não tenhas medo. É a fingir.” E o José Caldas a insurgir-se : “Não lhe digas isso ! Deixa-o sentir “

Terá sido este o principal contributo do José Caldas – criar emoções, levar-nos a todos – pais, filhos, professores, alunos – a sentir ?

Numa abordagem mais racional e sistemática, agruparia os contributos educativos do José Caldas em sete categorias :

Primeiro, o José Caldas reabilitou o teatro para crianças numa época em que este quase se resumia a peças dum didactismo limitado e directo. Trouxe-nos um teatro para crianças complexo, imaginativo e deslumbrante, com textos de grande qualidade poética e encenações engenhosas de fazer pensar.

Para isso, rebuscou no cancioneiro tradicional português, recuperou músicas e lenga-lengas populares infantis, que des-naturalizou e encenou no espectáculo já considerado histórico “Oh mãe deixa-me ir ver o Ai, ai minha machadinha…”

Para isso ainda, traduziu para a cena textos não dramáticos de autores brasileiros, alguns muito conhecidos entre nós – mas que, assim familiarizados, se tornaram bem mais amados - como Cecília Meireles, Clarice Lispector ou Graciliano Ramos – outros verdadeiras revelações como Lygia Bojunga Nunes na “Corda Bamba”.

Através da sua acção artística, através das suas transgressões e mestiçagens, do teatro como comunicação sensorial, da revelação da magia escondida na banalidade do quotidiano, da poesia de textos, sons e imagens, José Caldas é um verdadeiro educador. Mas é-o também – tem-no sido – noutros aspectos :

Por onde passou criou escola. A realização dos espectáculos exigia um trabalho colectivo profundo de investigação, estudo e preparação em si mesmo formativo. Uma vez feito o espectáculo, o Caldas partia para outra experiência deixando atrás de si um grupo capaz de se auto-determinar.

Este aspecto mais estritamente formativo foi bem aproveitado, numa dada época, pelo Ministério da Educação e por instituições de formação de professores como o Ramo Educacional da Faculdade de Ciências, que lhe encomendaram acções de formação contínua capazes de tornarem professores, novos ou veteranos, mais sensíveis, mais aptos a compreenderem os alunos e a comunicarem com os outros e consigo mesmos.

Além disso, o José Caldas tem tido cada vez mais a preocupação de, paralelamente aos espectáculos, produzir materiais ( ou apoiar a sua produção, como agora no Guia didáctico do espectáculo “As laranxas mais laranxas de todas as laranxas” , adaptação de um texto de Carlos Casares para o Centro Dramático Galego), materiais em que vai revelando o seu processo de criação artística. E ao mostrar como a criação não segue caminhos e traços pré-definidos, antes é exploração, busca e construção, tentativa de dizer o indizível, de descobrir o significado do insignificante, de dar forma ao caos e de, em cada um de nós, encontrar um mundo infinito - não serão estes materiais profundamente educativos ?

Por último (?), o José Caldas foi um criador de eventos “avant la lettre”. De facto, quando ainda não existia, entre nós, nem tal conceito nem tal profissão, o Zé Caldas organizava exposições, celebrações, feiras do livro, aberturas de “semanas dos media”… e para cada um desses “eventos” criava uma situação particular, apropriada e sempre surpreendente: o Bumba meu Boi abria caminho à literatura de cordel brasileira e portuguesa e esta a uma reflexão sobre a comunicação e os media; como a boca do dragão abria caminho às histórias e livros onde a inquietação dá lugar ao encantamento e este não apaga a inquietação.


Sob o estruturado rol dos sete caminhos educativos do José Caldas (ai vícios da razão !), espero que não se atabafe a frágil busca da espontaneidade, do jogo e da leveza, nem se apague a erupção do diverso, do desconhecido, do íntimo subterrâneo. É nessa corda bamba que o José Caldas procura a “terceira margem”, a “quinta parede”, a “linha da sombra”. E é aí que a educação pode reconciliar-se com o coração selvagem e voltar a ser aprendizagem da arte, do sonho e da vida.

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