Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

25.4.07
 
OS ANÚNCIOS PERDEDORES
Nos meus verdes anos fui copywriter numa agência de publicidade (Alguns dos anúncios em que colaborei duraram décadas, como foi o caso do "Compal é mesmo natural" que, fabricado em meados dos anos 60, se manteve quase idêntico até muito recentemente...) Talvez por isso, gosto de analisar campanhas publicitárias, de as apreciar ou de as desmontar. E começo a convencer-me que nada há tão difícil como fazer boa publicidade em matérias educativas. Já aqui me interroguei muito criticamente sobre a apocalíptica campanha dos "últimos profissionais" : "Esta é a última oceanógrafa portuguesa..." Lembram-se ? Tratava-se de um grupo de empresários que queria lançar o mecenato de apoio à escolaridade básica e secundária (pelo menos foi o que me explicaram...) mas mais parecia uma campanha denunciando os possíveis efeitos negativos do processo de Bolonha !

Agora é a campanha de divulgação do programa "Novas Oportunidades" que, contrariamente à que referi acima, tem sido amplamente criticada. Claro que algumas críticas são absurdas, mas outras, mais substantivas, são certamente pertinentes.

Retenho duas :

a) Falta de clareza : vistos de longe (como o devem ser) os cartazes parecem transmitir uma mensagem contrária à pretendida. Maria Gambina com uma tesoura nas mãos e a frase "Esta é a Maria Gambina que não terminou os estudos" parece querer dizer "A Maria Gambina que não terminou os estudos afinal é uma estilista de sucesso...) Idem para a Judite de Sousa e possivelmente para os outros...

b) Conceitos ultrapassados e contraditórios: afinal, aquelas imagens representam a "Maria Gambina que seria costureira se não tivesse acabado os estudos" e a "Judite de Sousa que seria empregada numa loja de videos se..."etc implicando uma desvalorização das aprendizagens não formais que o programa Novas Oportunidades quer ver reconhecidas e uma desvalorização dos bons profissionais a quem os estudos na maioria das vezes ajudaram e... às vezes não. (De Maria Elisa a Saramago muitos são os exemplos de bons profissionais que não "acabaram os estudos").

b) Concepção errada do que é (deve ser) a Educação de Adultos, o programa Novas Oportunidades, os Centros RVCC : o que deve ser promovido é o desejo e a possibilidade de aprender em qualquer idade, o que deve ser promovido ainda é a valorização do saber e a existência de "oportunidades" (novas ou velhas...) que permitam a concretização daquele desejo. O reconhecimento de competências é um meio para motivar as pessoas para isso, para facilitar o seu reingresso no circuito das aprendizagens, para as reconciliar com o aprender. Não é um fim em si mesmo, como o também não é (não deve ser) a obtenção de um diploma, nem a melhoria das estatísticas da escolaridade em Portugal, nem o sucesso a todo o custo.

O que é preciso promover em Portugal é o desejo de aprender e de bem fazer.

Maria Emília Brederode Santos

15.4.07
 
Lost in translation:
Professores, carreiras, funções e estatuto no espaço da União

João Santos*

É possível que, quando Marjatta Melto se dirigiu à plateia num inglês escorreito, funcional, a atenção dos professores que quase enchiam aquela sala de conferências do Lisboa Plaza, num sábado ameno de Fevereiro, traduzisse uma vontade autêntica de saber. Mas o quê? O segredo do sucesso educativo finlandês? Nem isso.
O tema da conferência, ‘Professores na Europa: condições de trabalho, perfil profissional e carreira’1, apontava mais modestamente para a descrição e análise de aspectos da evolução das condições de exercício dos pessoais da educação. O objecto era mais restrito, a ambição limitada.
Condições de trabalho
Porém, sabendo-o ou não antecipadamente, Marjatta Melto não deixou de percorrer alguns dos assuntos que visivelmente mais interessavam aos inúmeros sindicalistas presentes. A certa altura, entra no tópico avaliação: Inspecção? Não há. Também não se estabelece, na Finlândia, qualquer relação entre professores e resultados. Na verdade, os professores não são avaliados. (Mas acrescenta, sem hesitação: O director de escola sabe quem é bom professor, há avaliação informal, no entanto sem consequências na carreira). Quanto às escolas, a situação é diferente. A avaliação é obrigatória. Combina-se a auto-avaliação com a avaliação externa (mas esta não é para os media, nem tem uma finalidade punitiva).
Mas, então, como explicar os bons resultados do sistema finlandês? A qualificação inicial é muito exigente e a confiança social na escola muito forte.
Não estou seguro de reproduzir com inteira fidelidade. Mas foi isto que, honestamente, julgo ter ouvido. Como, pouco antes, a alusão, convencional, ao início dos anos 70 como o momento fundador da escola unificada no sistema educativo finlandês e à frequente persistência do último ciclo do básico no mesmo edifício onde se oferecem as formações secundárias. Será isto sinal de uma descoincidência física cuja supressão, passados quase 40 anos, não parece demasiado urgente? Os finlandeses terão, porventura, outro sentido das prioridades, embora impelidos pelo mesmo movimento geral que levou à quase simultânea unificação dos sistemas em países tão diferentes – histórica, política e culturalmente – como a Grã-Bretanha (pela mão de Mrs. Thatcher, num governo conservador, naturalmente), França ou Portugal, logo após o 25 de Abril.
Por duas vezes a alemã Anne Jenter se referiu à questão da organização da escolaridade básica, a segunda para dizer que os sindicatos alemães reclamam uma escola básica unificada, como na Finlândia. Mas terá impressionado mais os presentes quando deu conta das enormes diferenças que podem existir entre cargas horárias lectivas. Um professor de desporto pode ter 30 ou mais horas, ao passo que um professor de ciências pode ter 10 horas lectivas, sendo o tempo restante ocupado com a preparação de aulas. [Também na Finlândia, os professores de línguas, materna e estrangeira, têm menos horas de aulas, para compensar o tempo exigido pela correcção de trabalhos e testes.]
Recessão demográfica, emprego e recrutamento
Claro, a natureza federal do Estado alemão constitui um problema. As autonomias estaduais e a diversidade em matéria legislativa constituem problema. Mas um outro, comum, tornou-se há muito bem visível: a regressão demográfica está a ameaçar a manutenção dos postos de trabalho. E os sindicatos pedem a redução do tempo de trabalho, para que haja emprego para todos. Mas como? Mantendo salários que variam entre 2560 e 5480 euros?
E quem recrutará os professores no futuro? Na Finlândia, as escolas pertencem aos municípios. Por seu turno, na Alemanha observa-se uma crescente tendência para que sejam as escolas a recrutar os novos professores.
Aqui chegados, há que reconhecer que a comparação é um exercício complicado, como disse João Freire, mas indispensável. A dificuldade está em discernir o que releva do trabalho de descrição e compreensão e o que remete para a esfera da decisão política e para os pressupostos extra-cognitivos que a orientam – e portanto seleccionam os exemplos tidos por adequados.

Comparação e reforma educativa
A dificuldade atrás apontada torna-se literalmente intratável quando se ignoram os contextos sócio-políticos para os quais se importam projectos de reforma sectoriais, especialmente porque o impulso para o conhecimento, que se encontraria na origem do projecto comparativo dos administradores e decisores, aparece reduzido ao benigno propósito de buscar inspiração para a mudança nos ‘bons exemplos’ – e reproduzi-la ‘em casa’. E um ‘bom exemplo’ seria, basicamente, aquele que se afigura capaz de sustentar a ‘modernização’ consensual dos sistemas.
Como interpretar adequadamente os processos de transferência de modelos educativos? – pergunta-se. A esta interrogação responde Steiner-Khamsi sugerindo uma alteração significativa do sentido habitual do questionamento em que se apoia uma adesão rudimentar ao projecto ‘modernizador’. Não se pergunte «o que é que pode ser aprendido?» ou «o que é que pode ser transferido?», mas antes «o que é que foi transferido?», «o que é que foi aprendido?» – i.e., substitua-se uma orientação normativa – que parte do princípio de que se adopta o que funciona – por um tipo de questionamento predominantemente descritivo, e portanto empiricamente ancorado2, único capaz de conter a crítica dos pressupostos não analisados deste tipo de movimentos de apropriação, por se aplicar, modestamente, na observação dos seus efeitos.
A metodologia proposta incita-nos a adoptar uma disposição crítica em relação a uma ingénua auto-representação que os descreve como o resultado da mera busca e adopção de exemplos de reformas educativas mais ‘modernas’, ‘eficientes’ e ‘eficazes’.
Transferência de políticas ou transferência de discursos?
Mas ainda não é este verdadeiramente o núcleo da inflexão analítica sugerida. Na verdade, o que mais impressiona, olhando para exemplos comuns, e conhecidos, de transferência, são dois outros aspectos. Em primeiro lugar, a transferência educativa, mais do que traduzir a demonstrada eficácia de certas soluções, corresponde ao propósito de obter uma resposta convincente para problemas políticos internos. Em segundo lugar, toda a transferência é, realmente, «indigenização» um «tomar de empréstimo» – que implica uma recontextualização e uma modificação.
Steiner-Khamsi exemplifica com a tentativa de transferência de alguns aspectos da reforma educativa inglesa de finais dos anos 80 (materializada, no plano jurídico, no Education Act de 1988) para os EUA. Os motivos centrais do debate político de então eram três: introdução de um currículo nacional (nos EUA, a definição de ‘national standards’); a ênfase posta nas competências essenciais (‘basic skills’); e, em terceiro lugar, as temáticas da descentralização e da livre escolha das escolas (‘school choice’).
‘Devolução’ e burocracia de Estado
Ora, relativamente ao último tópico, não só é evidente a expansão de um discurso ‘devolucionista’ (às comunidades locais, aos pais, às autarquias) como também o é a virtual inexistência de instâncias empíricas que verifiquem os pressupostos em que assenta tal discurso. Este é, de resto, um dos não-ditos mais sonoros da transferência: o facto de operar frequentes vezes sem evidências do seu sucesso ou, então, apresentar-se mais ou menos cruamente como laboratório de experiências contestadas e, prática ou politicamente, inviabilizadas nos países de origem.
Entre os rankings de escolas, o cheque-ensino ou a descentralização podemos, porventura, verificar que o que se transfere é, basicamente, como diria Steiner-Khamsi, «o discurso político sobre menos burocracia de Estado, gestão eficiente e escolas como mercados. Como é que o discurso é transferido para a prática, isso é uma questão inteiramente diferente» (p.183).
Além disso, se pressupusermos analiticamente que, no discurso político da reforma, não é principalmente um projecto específico de educação que se revela, poderemos mais facilmente compreender, por exemplo, o caso particular da avaliação e da reforma das carreiras da administração pública portuguesa, e sua tradução no sector estatal da Educação. Estas começam a evidenciar-se não tanto como exemplo de coordenação de políticas sectoriais e de racionalização dos recursos do Estado, mas como caso particular de uma política de compressão salarial que ameaça transfigurar-se num ‘case study’ de dumping profissional, salarial e geracional.
Comprometendo seriamente (estas coisas nunca são definitivas!) a viabilidade e credibilidade da própria avaliação, como meio de consolidação institucional e de reforço da qualidade e da equidade no tratamento dos públicos da Educação, estas inovações estão também, pressente-se, a ocultar o insucesso das políticas de que são funcionalmente subsidiárias.

Ainda são funcionários públicos?
Com todas as dificuldades que encerra, desde logo a representada pelas inevitáveis traições da tradução, a comparação, mesmo na forma elementar de uma narrativa cheia de lacunas, funciona, pelo menos, como um revelador do sentido geral da marcha dos sistemas educativos e das polinizações cruzadas que se vão combinando com a também crescente convergência de pontos de vista dos actores políticos dominantes.
E reportando-me a um tipo de literatura que abunda nos círculos dirigentes, proveniente da rede Eurydice, encontro, relativamente aos tópicos centrais da conferência internacional de Fevereiro, alguns elementos que podem, eventualmente, contribuir para situar melhor algumas opções de governação.
Um primeiro tópico, inevitável nos dias que passam, respeita à condição do trabalhador docente empregado no sector público. É funcionário público? O seu estatuto legal-laboral tende a modificar-se? E em que sentido? Analisando um documento de 20033, que trata exclusivamente das condições de trabalho e remuneração dos professores, verificamos que prevalece, na generalidade dos países da União, o professor funcionário de carreira com vínculo vitalício. Entretanto, embora minoritário, tende a aumentar, desde o início da década de 90, o número de professores com contrato individual a termo, ou enquadrados por contrato colectivo. Esta nova figura do professor contratado ou empregado, e não já funcionário público, acompanha o movimento de transferência de competências em matéria educativa para as autarquias locais (compreendendo o financiamento e o recrutamento de pessoais). Na Finlândia, por exemplo, os professores não funcionários públicos cresceram de 18 para 24% numa só década, e mudanças relevantes no mesmo sentido verificaram-se na Itália, na Dinamarca, na Suécia e no Reino Unido.
Quanto trabalham e o que fazem?
Um outro tema recorrente diz respeito ao tempo de trabalho lectivo dos professores. Relativamente ao horário ‘standard’ anual, e para um número fixo de 660 horas em Portugal, no 3º ciclo do ensino básico (secundário inferior), encontramos valores inferiores, mínimos e máximos, em França e na Finlândia, fixos, na generalidade dos países do alargamento, mínimos em Espanha, no Luxemburgo ou na Alemanha. Em contrapartida, os valores máximos ultrapassavam o valor fixo português em Espanha (+65 horas/ano), no Luxemburgo (+30 horas) ou na Noruega4 (+24 horas). Na Escócia, o número de horas lectivas/ano era de 893.
Por outro lado, quando se compara a carga lectiva anual no princípio e no fim da carreira, observa-se que Portugal, apresentando uma das mais leves no fim do percurso profissional tem também uma das mais pesadas no início. A Noruega é, no fim da carreira, o país com menor carga horária lectiva, seguindo-se-lhe Portugal e a Islândia. Mas a comparação é, neste capítulo, prejudicada pela falta de informação relativamente a um grande número de países.
Se considerarmos o conteúdo funcional da actividade profissional dos professores, para além da docência (e actividades conexas, como preparação de aulas, feitura de materiais, correcção de trabalhos e testes), destacam-se as seguintes tarefas: substituição de professores ausentes (comum na generalidade dos países); ‘supervisão’ (vigilância) dos alunos nos intervalos (o que justifica a inclusão destes períodos no cálculo das horas lectivas); apoio e orientação de futuros professores; trabalho de grupo nos domínios do desenvolvimento curricular, do trabalho interdisciplinar e do plano de escola; trabalho de grupo no âmbito da avaliação interna da escola.
Envelhecem com os compatriotas
Finalmente, quanto a remunerações, verifica-se que, em quase todos os países, no início da carreira, se situam próximo do PIB per capita, sendo a Alemanha (153%), Espanha (145%) e Portugal (147%) as excepções mais relevantes. Já no final da carreira, as remunerações representam o dobro ou mais do dobro do PIB, com o Chipre (260%) e Portugal (331%) em posição de destaque.
Poder-se-ia acrescentar uma referência ao envelhecimento dos corpos docentes, combinando-a com a alteração, nalguns casos recentíssima, das disposições legais relativas à aposentação. Dados publicados em 19965 mostravam que decrescia consistentemente, na generalidade dos países da UE, o peso percentual dos professores jovens, explicada, «em parte», pela regressão da natalidade. Em contrapartida, mais de 50% dos professores tinha idade superior a 40 anos. Em cerca de 20 anos (entre 75 e 93), a percentagem de professores na faixa 40-50 anos duplicou, atingindo os 40%, o mesmo se passando com os de idade superior a 50, que ultrapassava largamente os 20%. Segundo João Freire6, que cita o GIASE, em 2003 haveria 50 mil docentes em Portugal com mais de 50 anos, i.e., cerca de 39% dos 127 mil ao serviço do ME. Este valor contrasta fortemente com os cerca de 15% que podemos estimar entre 85 e 90, a partir dos dados publicados pela Comissão Europeia em 96.

A condição docente e a crise dos sistemas
A evolução recente dos sistemas educativos comportou importantes sinais mudança, que poderíamos enumerar sumariamente: alterações significativas dos contextos, instrumentos e modelos de ensino; regressão demográfica generalizada, influindo dramaticamente na demografia dos recursos humanos da educação e favorecendo novos impulsos para a formação ao longo da vida e para a certificação das competências dos activos; debate generalizado sobre a parte que cabe à transmissão de conhecimentos e à inculcação de valores na esfera da educação formal; reorientações curriculares dirigidas para uma crescente valorização das ciências e tecnologias e das formações profissionais.
Paralelamente, e para citar Guy Neave7, era possível detectar no início da década passada, três importantes elementos de crise. Em primeiro lugar, o desafio à autoridade dos professores em matéria de definição de prioridades e finalidades para a educação. Industriais, empresários, associações de pais, etc., cada um com sua agenda específica, reclamam da escola diferentes outputs.
Em segundo lugar, a prioridade, em matéria de políticas educativas, já não reside nas questões da igualdade mas transfere-se para as questões da qualidade (e da avaliação).
Em terceiro lugar, a procura de mais eficientes modelos de educação, leva a buscar inspiração nos sistemas económicos de outros países, e particularmente nas práticas de selecção, competição e estilos educativos supostamente prevalecentes nos respectivos sistemas de ensino.
Tudo converge, deste modo, para que se instale uma profunda crise, estrategicamente amplificada como crise da confiança do público nos professores, nos pedagogos, etc. Ora, é impossível não relacionar as expressões retóricas de tal crise, quaisquer que sejam as suas causas reais, com a multiplicação das medidas funcionalmente subordinadas ao equilíbrio das contas do Estado. E será admissível sustentar que, vistas as coisas nesta perspectiva, tais medidas não têm como finalidade primordial melhorar o desempenho do sistema.
Resta, assim, a iniludível impressão de que alguma coisa se perde com a tradução dos ‘bons exemplos’ para português vernáculo. Talvez o fundamental: a continuidade e o consenso que asseguram a estabilidade das comunidades políticas, favorecem a autoridade da escola e sustentam a crença no acto educativo.


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[1] Organização conjunta do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e da Fundação Friedrich Ebert, com o apoio da Fundação Gulbenkian, teve lugar em 24.2.07.
2 Gita Steiner-Khamsi, «Transferring education, displacing reforms», in Schriewer, J. (ed.) Discourse Formation in Comparative Education, Peter Lang Verlag, 2000, p 165. As citações seguintes serão referidas à respectiva página.
3 Key topics in education in Europe, Report III – Working conditions and pay, Eurydice, 2003.
4 Com o Liechtenstein e a Islândia, integra o núcleo dos países da EFTA que pertencem ao espaço económico europeu e são tratados neste estudo (excluída está apenas a Suíça).
5 Comissão Europeia, Os números-chave da Educação na União Europeia – 95, Luxemburgo – Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 1996.
6 Estudo sobre a reorganização da carreira docente do Ministério da Educação – relatório final, Dez. 2005.
7 The teaching nation. Prospects for teachers in the European Community, Pergamon Press, 1992.


*Professor do Ensino Secundário

Publicado no Jornal de Letras - Educação - Abril 2007

14.4.07
 
Liderar uma escola:
Dom ou Aprendizagem?
Contributos para a discussão do perfil das direcções da escola e da sua formação

Maria Beatriz Bettencourt*

1. O actual contexto de debate
Num momento em que muita comunicação social se compraz em apontar a dedo o «fracasso» da escola pública portuguesa, ao lançar um novo tópico educativo para debate público, há que ser preciso quanto ao ponto de partida. Torna-se cada vez mais necessário debater uma questão educativa que é crucial aqui e agora: a do papel das direcções de escola/agrupamento de escolas e da respectiva formação, mas há que abordá-la sem a priori, situando-a no seu contexto social e educativo, tendo em vista encontrar, de forma lúcida e desapaixonada, caminhos para a melhoria das nossas escolas.
Todos os que têm contacto continuado com a realidade educativa portuguesa conhecem inúmeros exemplos de escolas públicas bem geridas, algumas em contextos bem adversos, em que a liderança pedagógica, através de um esforço quotidiano, tem conseguido ganhar pequenas/grandes batalhas contra o abandono e o insucesso escolar, motivando professores e alunos e criando ambientes integradores e estimulantes para a aprendizagem.
Esta realidade deve de ser melhor conhecida e sobretudo não pode ser ignorada quando discutimos os problemas da gestão escolar. Também temos que ter em conta que os problemas com que a escola pública portuguesa se depara não são recentes e não podem ser encarados como problemas unicamente escolares: com um passado histórico pesado em termos de desenvolvimento educativo, a sociedade portuguesa tem hoje uma população com níveis de escolarização muito baixos quando comparados com os de outros países do espaço europeu. Nas casas de muitas das nossas crianças e jovens não há livros e muitas das famílias dos actuais alunos nunca tiveram acesso à cultura escolar, o que tem consequências em termos de aprendizagem.
Os investimentos educativos têm efeitos a longo prazo e aquilo que agora se planeia e se realiza nas escolas só terá impacto social quando as crianças de agora chegarem à idade adulta. O tempo do desenvolvimento educativo é o do longo prazo e só de há trinta anos para cá se começou, em Portugal, a investir em educação ao mesmo nível a que os nossos parceiros europeus o fazem desde o pós-guerra. Não admira, por isso, que os resultados obtidos actualmente sejam ainda fracos.
Todavia, há que encontrar formas de rentabilizar o esforço que o país tem vindo a fazer no campo educativo. Para tal, é preciso compreender os problemas educativos na sua complexidade e não encontrar explicações apressadas e simplistas, criando bodes expiatórios, como irresponsavelmente têm vindo a fazer certos «opinion makers». É no sentido de encontrar caminhos para a compreensão e superação das actuais dificuldades que queremos abrir este debate.
2. As funções das direcções das escolas
Tradicionalmente, as pessoas (normalmente professores) que desempenhavam o papel de direcção nas escolas aprendiam a fazê-lo no exercício das suas funções. As responsabilidades crescentes das escolas e as correspondentes exigências feitas aos que as dirigem têm tornado progressivamente mais complexa a função dos gestores das escolas. Maior diversidade de actores institucionais, de públicos escolares e de ofertas de formação são alguns dos elementos que complexificam a gestão, tal como a integração da escola num contexto local/regional onde se torna necessária a articulação com múltiplos parceiros.
A dimensão das unidades de gestão também mudou: Com as alterações introduzidas em 1998 1) no regime de gestão das escolas, criaram-se os agrupamentos de escolas, Unidades de Gestão Educativa (UGE), mono ou plurilocais, que, em 2005, eram cerca de 1 300 2), agrupando 14 230 escolas.
Nestas UGE, o órgão de gestão e administração é o Conselho Executivo ou o Director, que tem funções muito alargadas, de exercício do poder disciplinar, de representação da UGE e de prestação de contas perante a comunidade e a tutela. Este órgão não governa sozinho: um órgão colegial, a Assembleia de Escola, representa a comunidade educativa (integrando representantes dos alunos, no caso do secundário, dos professores, do pessoal não-docente, dos pais, da autarquia e dos interesses socio-económicos e culturais locais); outro órgão colegial, o Conselho Pedagógico, assume a função de orientação educativa da escola/agrupamento e, finalmente, o Conselho Administrativo toma as decisões de cariz administrativo-financeiro.
O Conselho Executivo/Director é eleito para o cargo, não existindo, assim, uma carreira profissional, nem promoção, avaliação ou exoneração definidas segundo estatuto próprio. Sendo eleito, são os eleitores que podem avaliar o seu desempenho, exprimindo-se unicamente em caso de recandidatura ao cargo. Não existe uma associação profissional que represente os gestores escolares, que não se têm afirmado como grupo de pressão nas questões educativas.
As formas de gestão burocrática e/ou doméstica do estabelecimento de ensino já não correspondem às presentes circunstâncias em que a escola não é um mero serviço local do Ministério da Educação. Uma gestão de tipo estratégico ou pós-burocrático exige novas competências dos gestores – capacidades de comunicação e de negociação, sentido político – e também conhecimentos mais profundos em termos de gestão e de educação.
Mesmo se, em Portugal, a regulamentação central é ainda excessiva e a autonomia das escolas está embrionária (até hoje só uma escola assinou o seu contracto de autonomia), existe uma política governamental de avaliação (e autoavaliação) das escolas que coloca os gestores escolares perante o desafio da utilização de novos meios de regulação. Torna-se, assim, indispensável a formação dos gestores escolares.
3. A formação das direcções das escolas/agrupamentos
As responsabilidades crescentes das escolas e as correspondentes exigências feitas aos que as dirigem levaram a que, na maior parte dos países europeus, se institucionalizassem formações iniciais específicas de preparação para o desempenho profissional.
Em Portugal, a legislação estabelece que, para ser elegível para as funções de direcção, o professor deve ter completado uma formação específica (curso de especialização, mestrado, etc.) ou ter já exercido essas funções durante um mandato completo. Segundo Barroso (2002) e Afonso e Viseu (2001) a maioria dos gestores não possui a formação prevista na lei, e satisfaz somente as exigências relativas à experiência de funções de gestão.
Não havendo formação inicial, existe, contudo, há mais de um dezena de anos, uma vasta oferta de cursos de especialização e de mestrado, ministrados em numerosas instituições de ensino superior, a qu, em princípio, concorrem os gestores em exercício ou professores que tenham intenção de se candidatar à direcção.
O Ministério da Educação definiu o perfil de formação do administrador escolar, regulamentou a formação que confere especialização nesta área3) , e incumbiu um Conselho independente (o Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua) de acreditar os cursos e os formadores. Em casos pontuais, também financiou algumas destas formações.
Nas diversificadas formações universitárias em Administração da Educação, que se têm desenvolvido a partir do final dos anos 80, constata-se a predominância de uma lógica cultural, visando formar pessoas informadas no campo da educação, com uma dominante na administração. A lógica disciplinar na concepção dos curricula tem correspondência com a estrutura dos departamentos.
Uma lógica funcionalista, de resposta às exigências técnicas tradicionais da direcção, é dominante nalguns cursos, menos numerosos, de especialização, não universitários.
Em contrapartida, em nenhum destes tipos de formação se encontra a dominância de uma lógica profissional, ou seja a construção de quadros de referência ontológicos, axiológicos e praxiológicos pelos profissionais.
Também não existe uma oferta de formação contínua para os gestores que os ajudem no seu desenvolvimento profissional, num contexto em que têm que encontrar respostas aos desafios das aceleradas mudanças sociais, educativas, tecnológicas e políticas. As instituições de ensino superior também não criaram dispositivos para reconhecer as competências adquiridas pelos gestores na sua prática profissional, permitindo-lhes um percurso de formação mais adaptado à sua situação.
Finalmente, há que referir a grande desigualdade, em função da geografia, no acesso à formação. De facto, os gestores em exercício em regiões afastadas dos grandes centros estão, na prática, impossibilitados de seguir uma formação, dado os seus horários de trabalho preenchidos e o afastamento das instituições de formação.
Que dispositivos de formação podem ser criados? Que novos conteúdos de formação devem ser desenvolvidos?
É este o debate que é urgente levar a cabo e que o Fórum Português de Administração Educacional se compromete a dinamizar através do seu portal, com vista à elaboração de uma proposta a ser presente aos ministérios da tutela.
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1) Decreto-Lei nº 115/-A/98 de 4 de Maio
2) Nº indicado pela Inspecção Geral de Educação
3) Para serem considerados cursos de especialização, o nº mínimo de horas é de 250, sendo que a componente em ciências da educação pode ocupar até 20% do programa, a formação específica na área da gestão deve ser superior a 60%, estando também prevista a elaboração de um projecto pelos formandos.


*Presidente do Fórum Português de Administração Educacional
http://www.fpce.ul.pt/org/fpae/


Publicado no Jornal de Letras - Educação - Abril de 2007

13.4.07
 
Necessidades Emergentes das Crianças
Teresa Vasconcelos*


Inscrita no processo de ratificação da Convenção dos Direitos da Criança, vários trabalhos têm sido desenvolvidos analisando o processo de implementação da Convenção nos diferentes países subscritores[1]. Um dos mais interessantes foi realizado por Nico van Oudenhoven & Rekha Wazir, dos Países Baixos, com o título Newly Emerging Needs of Children[2]. Os autores dedicaram-se, nos últimos 10 anos, a uma “revisão de literatura” original: recolha de notícias (nomeadamente da BBC) sobre factos que se prendem com situações “inéditas”, ou pelo menos, “pouco comuns” na vida das crianças: por exemplo, a taxa de suicídio infantil no Japão; uma criança que, na China, mata a mãe por a pressionar para o desempenho escolar; meninas no Reino Unido vivendo precocemente a sua vida sexual ou necessitando de contraceptivos para o caso de serem violadas; prostituição infantil; crianças-bomba; crianças a receber tratamento por se terem tornado dependentes da Internet etc. Os autores cruzaram os dados recolhidos com um conjunto de estudos de caso realizados em tão diversos contextos como a Nicarágua, o Quénia, a Índia, ou, os Países Baixos. Pretendiam interrogar a Convenção dos Direitos da Criança tal como ela existe, e equacionar que desafios, problemáticas ou dilemas as sociedades de hoje colocam a essa mesma Convenção. Todo este trabalho está inscrito numa nova Sociologia da Infância que interroga uma “infância-padrão” e prefere nomear e descrever a diversidade de formas de se ser criança nos dias de hoje.

Nico van Oudenhoven e Rekha Wazir definem o conceito de “novas necessidades emergentes” como “um rótulo que pretende descrever um conjunto de desafios, oportunidades, acontecimentos, problemas e ameaças, levemente inter-ligados, que são relevantes para o desenvolvimento global das crianças mas que, até agora, não têm sido encontrados por essas crianças, nem pelas crianças que as antecederam, ou, se estavam presentes, então existe um dramático aumento da sua incidência” (2006: 33).
Alguns dos problemas e desafios encontrados prendem-se com o acesso indiscriminado das crianças à informação, a solidão infantil e a invasão de um “universo virtual” através dos meios de comunicação, levando à interiorizarão de modelos fabricados. Estes outros mundos a que as crianças têm acesso, de par com as suas realidades imediatas, provocam confrontos complexos e diluem as fronteiras entre o mundo adulto e o mundo infantil sem consequências ainda previsíveis.

Nico van Oudenhoven e Rekha Wazir recomendam que se criem mecanismos de rápida avaliação e intervenção no que toca às novas necessidades das crianças, permitindo identificá-las e a elas responder, através de um tecido social alargado de adultos (“uma cadeia humana”, referem estes investigadores) incluindo família e vizinhos, mas também educadores, profissionais da área social, da justiça, da saúde ou do lazer, que escutem as crianças, os seus pontos de vista sobre situações e acontecimentos e as ajudem nos seus problemas e nas suas formulações, à medida que tentam fazer sentido da realidade que as cerca.

Para manter esta “cadeia humana” de apoio às crianças, os autores concluem com as seguintes recomendações:

. Desenvolver uma visão compreensiva, isto é, desenvolver políticas coerentes para as crianças, com objectivos, estratégias, instrumentos, alocação de recursos, resultados previsíveis;

. Manter a criança como o enfoque primordial isto é, garantir que toda e qualquer actividade orientada para a criança seja para seu benefício, com pontos de ancoragem a nível governamental, avaliando todas as políticas nacionais e locais com respeito ao seu impacto na vida das crianças;

. Envolver todos os responsáveis, incluindo as vozes das crianças, fortalecendo os adultos responsáveis por elas, Organizações Não-Governamentais, profissionais, a comunidade de investigação, os meios de comunicação, bem como o sector privado;

. Definir de forma ampla as questões das crianças, incluindo todas as questões que violam a integridade da criança, preparando uma definição de conceitos suficientemente precisa para poder ser usada em contextos práticos e em investigação;

. Aumentar a atenção às medidas preventivas, desenvolvendo programas de prevenção de espectro largo que envolvam toda a população, identificando os factores de risco, e identificando mecanismos de compensação positiva e formas de re-orientação positiva;

. Aumentar a consciência e a sensibilidade cultural, aceitando as diferenças culturais com relação às crianças, evitando usar barreiras culturais como desculpa para a inacção; ter em atenção que a cultura e a tradição são complexas e também passam por mudanças; investir em políticas directas de inclusão de todos os grupos étnicos ou minoritários;
. Recolher dados de modo consistente, periódico e sistemático, conduzindo de forma regular inquéritos sobre factores-chave no desenvolvimento da criança; usar os dados para monitorizar tendências, o impacto das políticas, prioridades e atribuição de recursos e para informar o público;

. Promover investigação a pedido, definindo questões de investigação baseadas em problemas do domínio das políticas, responder às necessidades expressas pelas crianças e seus responsáveis e envolvê-los sempre que possível; estimular e promover investigação dentro dessas áreas;

. Promover acção baseada em trabalho comunitário, estimulando grupos de pais ou comunitários, validando iniciativas locais, envolvendo todas as organizações da comunidade, quer voluntárias, quer formais.



1 Portugal subscreveu a Convenção em 1989.
2 Nico van Oudenhoven & Rekha Wazir (2006). Newly Emerging Needs of Children: An exploration. Antuérpia, Bélgica: Garant.
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*Professora da Escola Superior de Educação de Lisboa


Publicado no Jornal de Letras - Educação - Março 2007


12.4.07
 
Monodocência no 2º Ciclo?
O que deve orientar o debate

Manuel Rangel*

A mudança ou reforma profunda de um sistema, qualquer que ele seja, implica necessariamente quebras e rupturas, não só com os quadros mentais vigentes como com muitos dos aspectos organizativos e papéis dos intervenientes.
Dizemos com frequência que tudo está mal, que é preciso alterar tudo, que era preciso alguém que tivesse a coragem de mexer nas coisas “de alto a baixo”! Reclamamos grandes reformas… porque está tudo mal! No entanto, quando alguém se atreve a mexer, de facto e mais a sério, nas coisas, imediatamente reagimos conservadoramente, defendendo o que existe, procurando manter tudo como está. Sobretudo, se nos sentimos implicados pessoalmente nesse processo, se isso vai mexer connosco ou com aqueles que nos estão mais próximos (por exemplo, o nosso grupo profissional).
Tal como noutros sectores, na Educação, estes processos são frequentes. O caso agora em discussão, das possíveis alterações curriculares para o 2º CEB, é bastante evidente desse ponto de vista.
Há muitos anos que, de um modo generalizado, se põe em causa e questiona este ciclo na sua essência. As questões levantadas com mais frequência prendem-se, especialmente, com:
(i) a mudança excessivamente abrupta que representa para os alunos a passagem de um regime de professor único (por vezes até de um único professor durante 4 anos) e de um currículo, senão integrado, de carácter mais global, para um regime de 7, 8, 9 professores e excessivamente compartimentado e pulverizado em termos disciplinares;
(ii) o facto de ser um ciclo de apenas 2 anos, por vezes até realizado em escolas próprias, obrigando à adaptação dos alunos a um novo esquema por um período tão curto;
(iii) e, em especial, o facto de ser um segmento da escolaridade com uma identidade mal definida, ou seja, com uma lógica original ambígua: um ciclo que manteve sempre mais a lógica de “ciclo preparatório” do ensino secundário, do que de prolongamento desejável da escolaridade básica inicial; um sector que parece continuar a organizar-se, assim, mais numa lógica regressiva, do que na lógica de “sequencialidade progressiva” que pareceria desejável e a que se refere a Lei de Bases.
Trata-se de um ciclo que parece ter ficado, de algum modo, “encravado” no sistema, mais subordinado à inércia, a questões organizativas e logísticas e a interesses e imperativos corporativos, do que a uma racionalidade no percurso escolar dos alunos. E isto, porque não parece haver nenhuma razão específica, nem psicológica nem pedagógica, para que um corte ou salto tão abrupto ocorra na escolaridade dos alunos.
Com efeito, se nos distanciarmos um pouco da tradição pura e simples, das questões organizativas e logísticas deste ciclo e das conveniências profissionais dos docentes, e nos centrarmos apenas no percurso dos alunos, podemos considerar que, numa lógica de extensão e progressão do 1º Ciclo, a passagem para o 2º Ciclo traga alguma especialização do ponto vista das matérias/disciplinas que compõem o currículo, mas nada parece justificar o salto que hoje se verifica.
Desde há vários anos, aliás, que esse problema se coloca em Portugal. Em todas as reformas o ponto de partida tem sido sempre o de reduzir o número de disciplinas do 2º Ciclo e criar uma sequencialidade mais lógica entre as duas primeiras etapas de escolaridade. A LBSE em vigor, de 1986, refere que “no 1º ciclo, o ensino é globalizante, da responsabilidade de um professor único, que pode ser coadjuvado em áreas especializadas; no 2º ciclo, o ensino organiza-se por áreas interdisciplinares de formação básica e desenvolve-se predominantemente em regime de professor por área; no 3º ciclo, o ensino organiza-se segundo um plano curricular unificado (…) e desenvolve-se em regime de um professor por disciplina ou grupo de disciplinas.” Refere ainda a LBSE que “a articulação entre os ciclos obedece a uma sequencialidade progressiva, conferindo a cada ciclo a função de completar, aprofundar e alargar o ciclo anterior, numa perspectiva de unidade global do ensino básico.”
No entanto, se esse tem sido o ponto de partida, das discussões públicas e negociações que se seguem, acabam por resultar recuos significativos, permanecendo tudo, no geral, na irracionalidade em que se encontrava.
Naturalmente que em qualquer mudança, não se podem ignorar as condições pré-existentes, nem os recursos disponíveis. E, no caso, é evidente que os professores são uma peça fundamental a ter em conta em qualquer alteração que se pretenda levar a cabo – facto que, convenhamos, nem sempre tem sido considerado ultimamente. No entanto, também com frequência se mascaram interesses pessoais (profissionais), com argumentos de fundamento, no mínimo, duvidoso: a redução do número de disciplinas ou professores representaria um abaixamento ainda maior do nível de ensino, reforçaria o facilitismo reinante, significaria uma ainda maior infantilização do currículo.
Quem nos garante, contudo, que não é a excessiva pulverização e especialização do currículo a principal causa desses mesmos problemas? Quem pode afirmar, com segurança, que um currículo mais integrado é mais infantilizante ou conduz a um maior facilitismo.
Bastará, aliás, ver o que se passa na maior parte dos países da Europa.
Em artigo recente, no portal Educare, assinado por Joana Santos, analisa-se a organização do ensino básico/elementar em 5 países europeus: Espanha, França, Alemanha, Inglaterra e Finlândia, focando-se, especialmente em dois aspectos: o regime de docência e o elenco disciplinar, nessas etapas. Conclui-se daí que, nos países analisados, os 5 ou 6 primeiros anos de escolaridade – 6 na maioria – o currículo tem carácter integrado e o regime vigente é o de professor único, generalista (podendo ser “coadjuvado” em algumas matérias). Na maior parte dos casos existe até um único ciclo cobrindo total ou parcialmente essa etapa.
E não consta que a dita infantilização ou baixo nível caracterizem generalizadamente esses países.
Sensível aos argumentos da preparação e qualidade dos professores e ao seu consequente reflexo sobre a qualidade das aprendizagens dos alunos, creio que se poderá até chegar a alguma solução, nem que seja transitória, de compromisso. Temos, aliás, em Portugal, experiências que poderão dar um contributo para repensar a situação. Será o caso, por exemplo, da Telescola (EBM), com 2 professores: um professor para as chamadas áreas de “ciências” e outro para a de “letras” (assumindo, por exemplo, um deles a direcção/tutoria da turma), podendo ainda ser coadjuvado em áreas específicas (educação física; música; língua estrangeira, quando não coberta pelo professor de “letras”, por exemplo). Mas outras hipóteses poderão ser consideradas.
Creio que uma discussão ampla (não quer dizer necessariamente longa) sobre este assunto é absolutamente necessária e que duas premissas a devem guiar:
- em primeiro lugar, que a situação deste 2º ciclo não pode deixar de ser revista e deverá sê-lo com a maior urgência, porque já demasiado adiada;
- segundo, que essa revisão resulte de um debate alargado, feito de forma séria e racional e em que não se deixem cristalizar posições – ou seja, de um lado aqueles que dizem que tudo de faz apenas por razões economicistas e para poupar; do outro aqueles que parece defenderem e tomarem medidas sempre para “castigar”, no pressuposto de que do outro lado todos querem apenas defender os seus interesses pessoais e fugir às suas obrigações e responsabilidades.
O critério prevalecente deve ser, aqui e sempre, o do percurso escolar dos alunos e o da efectiva qualidade das aprendizagens.

*Professor e director da escola “Tangerina”

Publicado no Jornal de Letras - Educação - Março 2007

4.4.07
 
O erro de Sócrates
Nunca entendi bem a curiosidade do meu pai a propósito de cada político que aparece na televisão. Aquilo que ele diz naquele momento interessa-lhe muito menos do que “aquilo que ele é” (entenda-se que curso tirou) ..por regra faço-me desentendida e invariavelmente respondo que é político, chamo a atenção para o que faz...mas o que ele quer mesmo saber é se aquele eleito tirou algum curso superior. Para ele, político que não tem curso...não lhe merece consideração. Ele e muitos portugueses (julgava eu por engano que de outra geração) ainda são do tempo em que a posse de um diploma separava os portugueses em duas categorias distintas. Esta mentalidade assenta no pressuposto de que só aquilo que se aprende na escola ou na universidade é que é digno de ser valorizado como saber. Não faz sentido que a apreciação de um primeiro-ministro ou de um presidente da república sejam feitas em função dos títulos académicos, que nem deveriam usar. ....
Veja-se o que se passa na maioria dos países europeus.

Vem isto a propósito das notícias sobre um dos diplomas do Primeiro Ministro, José Sócrates (ao que parece já depois do diploma que esteve na base da polémica, na Universidade Independente fez uma pós-graduação numa Universidade Pública, diploma de que curiosamente ninguém fala). As críticas baseiam-se designadamente nos factos de ter concluído rapidamente o diploma de licenciatura, de o diploma ter sido passado num domingo, e um jornal do fim-de-semana associava mesmo a esta polémica uma lista de políticos que teriam concluído as suas licenciaturas em fases tardias da vida. Como se de um pecado se tratasse. O abandono a meio de percursos académicos não é desejável, mas cada um tem o direito de fazer o percurso académico que entender, desde que não o faça à custa do erário público, acumulando repetências. Num país que prezasse a educação ao longo da vida estes casos poderiam ser dados como exemplo de pessoas que, apesar dos lugares categorizados que ocupavam, quiseram aprender mais.
A alternância do estudo e de actividades de trabalho deveria ser encarada com naturalidade numa sociedade de conhecimento. Como também seria normal que pessoas que deram provas numa actividade política como é o caso de Sócrates, António José Seguro, Carvalho da Silva, Manuel Monteiro, ao reingressarem num percurso académico vissem reconhecidas competências e saberes adquiridos fora da escola e, por isso, pudessem fazer um percurso académico mais rápido. Nos Estados Unidos da América, o reconhecimento e validação de competências são prática corrente. Parte das grandes universidades europeias já o fazem também. Em Portugal ficamo-nos pelo reconhecimento e validação de competências ao nível dos ensinos básico e secundário. Estes processos são muitas vezes um estímulo para que as pessoas continuem a estudar. E Portugal bem precisa de criar estímulos para que se desenvolva mais a educação de adultos e seria bom que universidades e politécnicos aderissem a esses processos.
Um outro ponto desta polémica é o uso do título de engenheiro por alguém que tem um diploma de engenharia. Outra originalidade portuguesa: temos cursos reconhecidos pelo Ministério da Educação / Ensino Superior alguns deles mesmo financiados pelo Estado que não dão direito ao uso do respectivo título.
As análises até agora disponibilizadas pela imprensa portuguesa sobre este “folhetim” assentam em conceitos obsoletos que conduzem a meu ver a uma distorção da verdade.
Sócrates só cometeu um erro: ter frequentado aquela universidade. Ele, e tantos outros portugueses, foram vítimas de decisões políticas que permitiram a existência no nosso país de instituições que em nada prestigiam o ensino superior. Pena é que instituições prestigiadas em pouco tenham contribuído para o desenvolvimento da educação ao longo da vida.

Ana Maria Bettencourt