Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

14.4.07
 
Liderar uma escola:
Dom ou Aprendizagem?
Contributos para a discussão do perfil das direcções da escola e da sua formação

Maria Beatriz Bettencourt*

1. O actual contexto de debate
Num momento em que muita comunicação social se compraz em apontar a dedo o «fracasso» da escola pública portuguesa, ao lançar um novo tópico educativo para debate público, há que ser preciso quanto ao ponto de partida. Torna-se cada vez mais necessário debater uma questão educativa que é crucial aqui e agora: a do papel das direcções de escola/agrupamento de escolas e da respectiva formação, mas há que abordá-la sem a priori, situando-a no seu contexto social e educativo, tendo em vista encontrar, de forma lúcida e desapaixonada, caminhos para a melhoria das nossas escolas.
Todos os que têm contacto continuado com a realidade educativa portuguesa conhecem inúmeros exemplos de escolas públicas bem geridas, algumas em contextos bem adversos, em que a liderança pedagógica, através de um esforço quotidiano, tem conseguido ganhar pequenas/grandes batalhas contra o abandono e o insucesso escolar, motivando professores e alunos e criando ambientes integradores e estimulantes para a aprendizagem.
Esta realidade deve de ser melhor conhecida e sobretudo não pode ser ignorada quando discutimos os problemas da gestão escolar. Também temos que ter em conta que os problemas com que a escola pública portuguesa se depara não são recentes e não podem ser encarados como problemas unicamente escolares: com um passado histórico pesado em termos de desenvolvimento educativo, a sociedade portuguesa tem hoje uma população com níveis de escolarização muito baixos quando comparados com os de outros países do espaço europeu. Nas casas de muitas das nossas crianças e jovens não há livros e muitas das famílias dos actuais alunos nunca tiveram acesso à cultura escolar, o que tem consequências em termos de aprendizagem.
Os investimentos educativos têm efeitos a longo prazo e aquilo que agora se planeia e se realiza nas escolas só terá impacto social quando as crianças de agora chegarem à idade adulta. O tempo do desenvolvimento educativo é o do longo prazo e só de há trinta anos para cá se começou, em Portugal, a investir em educação ao mesmo nível a que os nossos parceiros europeus o fazem desde o pós-guerra. Não admira, por isso, que os resultados obtidos actualmente sejam ainda fracos.
Todavia, há que encontrar formas de rentabilizar o esforço que o país tem vindo a fazer no campo educativo. Para tal, é preciso compreender os problemas educativos na sua complexidade e não encontrar explicações apressadas e simplistas, criando bodes expiatórios, como irresponsavelmente têm vindo a fazer certos «opinion makers». É no sentido de encontrar caminhos para a compreensão e superação das actuais dificuldades que queremos abrir este debate.
2. As funções das direcções das escolas
Tradicionalmente, as pessoas (normalmente professores) que desempenhavam o papel de direcção nas escolas aprendiam a fazê-lo no exercício das suas funções. As responsabilidades crescentes das escolas e as correspondentes exigências feitas aos que as dirigem têm tornado progressivamente mais complexa a função dos gestores das escolas. Maior diversidade de actores institucionais, de públicos escolares e de ofertas de formação são alguns dos elementos que complexificam a gestão, tal como a integração da escola num contexto local/regional onde se torna necessária a articulação com múltiplos parceiros.
A dimensão das unidades de gestão também mudou: Com as alterações introduzidas em 1998 1) no regime de gestão das escolas, criaram-se os agrupamentos de escolas, Unidades de Gestão Educativa (UGE), mono ou plurilocais, que, em 2005, eram cerca de 1 300 2), agrupando 14 230 escolas.
Nestas UGE, o órgão de gestão e administração é o Conselho Executivo ou o Director, que tem funções muito alargadas, de exercício do poder disciplinar, de representação da UGE e de prestação de contas perante a comunidade e a tutela. Este órgão não governa sozinho: um órgão colegial, a Assembleia de Escola, representa a comunidade educativa (integrando representantes dos alunos, no caso do secundário, dos professores, do pessoal não-docente, dos pais, da autarquia e dos interesses socio-económicos e culturais locais); outro órgão colegial, o Conselho Pedagógico, assume a função de orientação educativa da escola/agrupamento e, finalmente, o Conselho Administrativo toma as decisões de cariz administrativo-financeiro.
O Conselho Executivo/Director é eleito para o cargo, não existindo, assim, uma carreira profissional, nem promoção, avaliação ou exoneração definidas segundo estatuto próprio. Sendo eleito, são os eleitores que podem avaliar o seu desempenho, exprimindo-se unicamente em caso de recandidatura ao cargo. Não existe uma associação profissional que represente os gestores escolares, que não se têm afirmado como grupo de pressão nas questões educativas.
As formas de gestão burocrática e/ou doméstica do estabelecimento de ensino já não correspondem às presentes circunstâncias em que a escola não é um mero serviço local do Ministério da Educação. Uma gestão de tipo estratégico ou pós-burocrático exige novas competências dos gestores – capacidades de comunicação e de negociação, sentido político – e também conhecimentos mais profundos em termos de gestão e de educação.
Mesmo se, em Portugal, a regulamentação central é ainda excessiva e a autonomia das escolas está embrionária (até hoje só uma escola assinou o seu contracto de autonomia), existe uma política governamental de avaliação (e autoavaliação) das escolas que coloca os gestores escolares perante o desafio da utilização de novos meios de regulação. Torna-se, assim, indispensável a formação dos gestores escolares.
3. A formação das direcções das escolas/agrupamentos
As responsabilidades crescentes das escolas e as correspondentes exigências feitas aos que as dirigem levaram a que, na maior parte dos países europeus, se institucionalizassem formações iniciais específicas de preparação para o desempenho profissional.
Em Portugal, a legislação estabelece que, para ser elegível para as funções de direcção, o professor deve ter completado uma formação específica (curso de especialização, mestrado, etc.) ou ter já exercido essas funções durante um mandato completo. Segundo Barroso (2002) e Afonso e Viseu (2001) a maioria dos gestores não possui a formação prevista na lei, e satisfaz somente as exigências relativas à experiência de funções de gestão.
Não havendo formação inicial, existe, contudo, há mais de um dezena de anos, uma vasta oferta de cursos de especialização e de mestrado, ministrados em numerosas instituições de ensino superior, a qu, em princípio, concorrem os gestores em exercício ou professores que tenham intenção de se candidatar à direcção.
O Ministério da Educação definiu o perfil de formação do administrador escolar, regulamentou a formação que confere especialização nesta área3) , e incumbiu um Conselho independente (o Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua) de acreditar os cursos e os formadores. Em casos pontuais, também financiou algumas destas formações.
Nas diversificadas formações universitárias em Administração da Educação, que se têm desenvolvido a partir do final dos anos 80, constata-se a predominância de uma lógica cultural, visando formar pessoas informadas no campo da educação, com uma dominante na administração. A lógica disciplinar na concepção dos curricula tem correspondência com a estrutura dos departamentos.
Uma lógica funcionalista, de resposta às exigências técnicas tradicionais da direcção, é dominante nalguns cursos, menos numerosos, de especialização, não universitários.
Em contrapartida, em nenhum destes tipos de formação se encontra a dominância de uma lógica profissional, ou seja a construção de quadros de referência ontológicos, axiológicos e praxiológicos pelos profissionais.
Também não existe uma oferta de formação contínua para os gestores que os ajudem no seu desenvolvimento profissional, num contexto em que têm que encontrar respostas aos desafios das aceleradas mudanças sociais, educativas, tecnológicas e políticas. As instituições de ensino superior também não criaram dispositivos para reconhecer as competências adquiridas pelos gestores na sua prática profissional, permitindo-lhes um percurso de formação mais adaptado à sua situação.
Finalmente, há que referir a grande desigualdade, em função da geografia, no acesso à formação. De facto, os gestores em exercício em regiões afastadas dos grandes centros estão, na prática, impossibilitados de seguir uma formação, dado os seus horários de trabalho preenchidos e o afastamento das instituições de formação.
Que dispositivos de formação podem ser criados? Que novos conteúdos de formação devem ser desenvolvidos?
É este o debate que é urgente levar a cabo e que o Fórum Português de Administração Educacional se compromete a dinamizar através do seu portal, com vista à elaboração de uma proposta a ser presente aos ministérios da tutela.
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1) Decreto-Lei nº 115/-A/98 de 4 de Maio
2) Nº indicado pela Inspecção Geral de Educação
3) Para serem considerados cursos de especialização, o nº mínimo de horas é de 250, sendo que a componente em ciências da educação pode ocupar até 20% do programa, a formação específica na área da gestão deve ser superior a 60%, estando também prevista a elaboração de um projecto pelos formandos.


*Presidente do Fórum Português de Administração Educacional
http://www.fpce.ul.pt/org/fpae/


Publicado no Jornal de Letras - Educação - Abril de 2007

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