Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

15.4.07
 
Lost in translation:
Professores, carreiras, funções e estatuto no espaço da União

João Santos*

É possível que, quando Marjatta Melto se dirigiu à plateia num inglês escorreito, funcional, a atenção dos professores que quase enchiam aquela sala de conferências do Lisboa Plaza, num sábado ameno de Fevereiro, traduzisse uma vontade autêntica de saber. Mas o quê? O segredo do sucesso educativo finlandês? Nem isso.
O tema da conferência, ‘Professores na Europa: condições de trabalho, perfil profissional e carreira’1, apontava mais modestamente para a descrição e análise de aspectos da evolução das condições de exercício dos pessoais da educação. O objecto era mais restrito, a ambição limitada.
Condições de trabalho
Porém, sabendo-o ou não antecipadamente, Marjatta Melto não deixou de percorrer alguns dos assuntos que visivelmente mais interessavam aos inúmeros sindicalistas presentes. A certa altura, entra no tópico avaliação: Inspecção? Não há. Também não se estabelece, na Finlândia, qualquer relação entre professores e resultados. Na verdade, os professores não são avaliados. (Mas acrescenta, sem hesitação: O director de escola sabe quem é bom professor, há avaliação informal, no entanto sem consequências na carreira). Quanto às escolas, a situação é diferente. A avaliação é obrigatória. Combina-se a auto-avaliação com a avaliação externa (mas esta não é para os media, nem tem uma finalidade punitiva).
Mas, então, como explicar os bons resultados do sistema finlandês? A qualificação inicial é muito exigente e a confiança social na escola muito forte.
Não estou seguro de reproduzir com inteira fidelidade. Mas foi isto que, honestamente, julgo ter ouvido. Como, pouco antes, a alusão, convencional, ao início dos anos 70 como o momento fundador da escola unificada no sistema educativo finlandês e à frequente persistência do último ciclo do básico no mesmo edifício onde se oferecem as formações secundárias. Será isto sinal de uma descoincidência física cuja supressão, passados quase 40 anos, não parece demasiado urgente? Os finlandeses terão, porventura, outro sentido das prioridades, embora impelidos pelo mesmo movimento geral que levou à quase simultânea unificação dos sistemas em países tão diferentes – histórica, política e culturalmente – como a Grã-Bretanha (pela mão de Mrs. Thatcher, num governo conservador, naturalmente), França ou Portugal, logo após o 25 de Abril.
Por duas vezes a alemã Anne Jenter se referiu à questão da organização da escolaridade básica, a segunda para dizer que os sindicatos alemães reclamam uma escola básica unificada, como na Finlândia. Mas terá impressionado mais os presentes quando deu conta das enormes diferenças que podem existir entre cargas horárias lectivas. Um professor de desporto pode ter 30 ou mais horas, ao passo que um professor de ciências pode ter 10 horas lectivas, sendo o tempo restante ocupado com a preparação de aulas. [Também na Finlândia, os professores de línguas, materna e estrangeira, têm menos horas de aulas, para compensar o tempo exigido pela correcção de trabalhos e testes.]
Recessão demográfica, emprego e recrutamento
Claro, a natureza federal do Estado alemão constitui um problema. As autonomias estaduais e a diversidade em matéria legislativa constituem problema. Mas um outro, comum, tornou-se há muito bem visível: a regressão demográfica está a ameaçar a manutenção dos postos de trabalho. E os sindicatos pedem a redução do tempo de trabalho, para que haja emprego para todos. Mas como? Mantendo salários que variam entre 2560 e 5480 euros?
E quem recrutará os professores no futuro? Na Finlândia, as escolas pertencem aos municípios. Por seu turno, na Alemanha observa-se uma crescente tendência para que sejam as escolas a recrutar os novos professores.
Aqui chegados, há que reconhecer que a comparação é um exercício complicado, como disse João Freire, mas indispensável. A dificuldade está em discernir o que releva do trabalho de descrição e compreensão e o que remete para a esfera da decisão política e para os pressupostos extra-cognitivos que a orientam – e portanto seleccionam os exemplos tidos por adequados.

Comparação e reforma educativa
A dificuldade atrás apontada torna-se literalmente intratável quando se ignoram os contextos sócio-políticos para os quais se importam projectos de reforma sectoriais, especialmente porque o impulso para o conhecimento, que se encontraria na origem do projecto comparativo dos administradores e decisores, aparece reduzido ao benigno propósito de buscar inspiração para a mudança nos ‘bons exemplos’ – e reproduzi-la ‘em casa’. E um ‘bom exemplo’ seria, basicamente, aquele que se afigura capaz de sustentar a ‘modernização’ consensual dos sistemas.
Como interpretar adequadamente os processos de transferência de modelos educativos? – pergunta-se. A esta interrogação responde Steiner-Khamsi sugerindo uma alteração significativa do sentido habitual do questionamento em que se apoia uma adesão rudimentar ao projecto ‘modernizador’. Não se pergunte «o que é que pode ser aprendido?» ou «o que é que pode ser transferido?», mas antes «o que é que foi transferido?», «o que é que foi aprendido?» – i.e., substitua-se uma orientação normativa – que parte do princípio de que se adopta o que funciona – por um tipo de questionamento predominantemente descritivo, e portanto empiricamente ancorado2, único capaz de conter a crítica dos pressupostos não analisados deste tipo de movimentos de apropriação, por se aplicar, modestamente, na observação dos seus efeitos.
A metodologia proposta incita-nos a adoptar uma disposição crítica em relação a uma ingénua auto-representação que os descreve como o resultado da mera busca e adopção de exemplos de reformas educativas mais ‘modernas’, ‘eficientes’ e ‘eficazes’.
Transferência de políticas ou transferência de discursos?
Mas ainda não é este verdadeiramente o núcleo da inflexão analítica sugerida. Na verdade, o que mais impressiona, olhando para exemplos comuns, e conhecidos, de transferência, são dois outros aspectos. Em primeiro lugar, a transferência educativa, mais do que traduzir a demonstrada eficácia de certas soluções, corresponde ao propósito de obter uma resposta convincente para problemas políticos internos. Em segundo lugar, toda a transferência é, realmente, «indigenização» um «tomar de empréstimo» – que implica uma recontextualização e uma modificação.
Steiner-Khamsi exemplifica com a tentativa de transferência de alguns aspectos da reforma educativa inglesa de finais dos anos 80 (materializada, no plano jurídico, no Education Act de 1988) para os EUA. Os motivos centrais do debate político de então eram três: introdução de um currículo nacional (nos EUA, a definição de ‘national standards’); a ênfase posta nas competências essenciais (‘basic skills’); e, em terceiro lugar, as temáticas da descentralização e da livre escolha das escolas (‘school choice’).
‘Devolução’ e burocracia de Estado
Ora, relativamente ao último tópico, não só é evidente a expansão de um discurso ‘devolucionista’ (às comunidades locais, aos pais, às autarquias) como também o é a virtual inexistência de instâncias empíricas que verifiquem os pressupostos em que assenta tal discurso. Este é, de resto, um dos não-ditos mais sonoros da transferência: o facto de operar frequentes vezes sem evidências do seu sucesso ou, então, apresentar-se mais ou menos cruamente como laboratório de experiências contestadas e, prática ou politicamente, inviabilizadas nos países de origem.
Entre os rankings de escolas, o cheque-ensino ou a descentralização podemos, porventura, verificar que o que se transfere é, basicamente, como diria Steiner-Khamsi, «o discurso político sobre menos burocracia de Estado, gestão eficiente e escolas como mercados. Como é que o discurso é transferido para a prática, isso é uma questão inteiramente diferente» (p.183).
Além disso, se pressupusermos analiticamente que, no discurso político da reforma, não é principalmente um projecto específico de educação que se revela, poderemos mais facilmente compreender, por exemplo, o caso particular da avaliação e da reforma das carreiras da administração pública portuguesa, e sua tradução no sector estatal da Educação. Estas começam a evidenciar-se não tanto como exemplo de coordenação de políticas sectoriais e de racionalização dos recursos do Estado, mas como caso particular de uma política de compressão salarial que ameaça transfigurar-se num ‘case study’ de dumping profissional, salarial e geracional.
Comprometendo seriamente (estas coisas nunca são definitivas!) a viabilidade e credibilidade da própria avaliação, como meio de consolidação institucional e de reforço da qualidade e da equidade no tratamento dos públicos da Educação, estas inovações estão também, pressente-se, a ocultar o insucesso das políticas de que são funcionalmente subsidiárias.

Ainda são funcionários públicos?
Com todas as dificuldades que encerra, desde logo a representada pelas inevitáveis traições da tradução, a comparação, mesmo na forma elementar de uma narrativa cheia de lacunas, funciona, pelo menos, como um revelador do sentido geral da marcha dos sistemas educativos e das polinizações cruzadas que se vão combinando com a também crescente convergência de pontos de vista dos actores políticos dominantes.
E reportando-me a um tipo de literatura que abunda nos círculos dirigentes, proveniente da rede Eurydice, encontro, relativamente aos tópicos centrais da conferência internacional de Fevereiro, alguns elementos que podem, eventualmente, contribuir para situar melhor algumas opções de governação.
Um primeiro tópico, inevitável nos dias que passam, respeita à condição do trabalhador docente empregado no sector público. É funcionário público? O seu estatuto legal-laboral tende a modificar-se? E em que sentido? Analisando um documento de 20033, que trata exclusivamente das condições de trabalho e remuneração dos professores, verificamos que prevalece, na generalidade dos países da União, o professor funcionário de carreira com vínculo vitalício. Entretanto, embora minoritário, tende a aumentar, desde o início da década de 90, o número de professores com contrato individual a termo, ou enquadrados por contrato colectivo. Esta nova figura do professor contratado ou empregado, e não já funcionário público, acompanha o movimento de transferência de competências em matéria educativa para as autarquias locais (compreendendo o financiamento e o recrutamento de pessoais). Na Finlândia, por exemplo, os professores não funcionários públicos cresceram de 18 para 24% numa só década, e mudanças relevantes no mesmo sentido verificaram-se na Itália, na Dinamarca, na Suécia e no Reino Unido.
Quanto trabalham e o que fazem?
Um outro tema recorrente diz respeito ao tempo de trabalho lectivo dos professores. Relativamente ao horário ‘standard’ anual, e para um número fixo de 660 horas em Portugal, no 3º ciclo do ensino básico (secundário inferior), encontramos valores inferiores, mínimos e máximos, em França e na Finlândia, fixos, na generalidade dos países do alargamento, mínimos em Espanha, no Luxemburgo ou na Alemanha. Em contrapartida, os valores máximos ultrapassavam o valor fixo português em Espanha (+65 horas/ano), no Luxemburgo (+30 horas) ou na Noruega4 (+24 horas). Na Escócia, o número de horas lectivas/ano era de 893.
Por outro lado, quando se compara a carga lectiva anual no princípio e no fim da carreira, observa-se que Portugal, apresentando uma das mais leves no fim do percurso profissional tem também uma das mais pesadas no início. A Noruega é, no fim da carreira, o país com menor carga horária lectiva, seguindo-se-lhe Portugal e a Islândia. Mas a comparação é, neste capítulo, prejudicada pela falta de informação relativamente a um grande número de países.
Se considerarmos o conteúdo funcional da actividade profissional dos professores, para além da docência (e actividades conexas, como preparação de aulas, feitura de materiais, correcção de trabalhos e testes), destacam-se as seguintes tarefas: substituição de professores ausentes (comum na generalidade dos países); ‘supervisão’ (vigilância) dos alunos nos intervalos (o que justifica a inclusão destes períodos no cálculo das horas lectivas); apoio e orientação de futuros professores; trabalho de grupo nos domínios do desenvolvimento curricular, do trabalho interdisciplinar e do plano de escola; trabalho de grupo no âmbito da avaliação interna da escola.
Envelhecem com os compatriotas
Finalmente, quanto a remunerações, verifica-se que, em quase todos os países, no início da carreira, se situam próximo do PIB per capita, sendo a Alemanha (153%), Espanha (145%) e Portugal (147%) as excepções mais relevantes. Já no final da carreira, as remunerações representam o dobro ou mais do dobro do PIB, com o Chipre (260%) e Portugal (331%) em posição de destaque.
Poder-se-ia acrescentar uma referência ao envelhecimento dos corpos docentes, combinando-a com a alteração, nalguns casos recentíssima, das disposições legais relativas à aposentação. Dados publicados em 19965 mostravam que decrescia consistentemente, na generalidade dos países da UE, o peso percentual dos professores jovens, explicada, «em parte», pela regressão da natalidade. Em contrapartida, mais de 50% dos professores tinha idade superior a 40 anos. Em cerca de 20 anos (entre 75 e 93), a percentagem de professores na faixa 40-50 anos duplicou, atingindo os 40%, o mesmo se passando com os de idade superior a 50, que ultrapassava largamente os 20%. Segundo João Freire6, que cita o GIASE, em 2003 haveria 50 mil docentes em Portugal com mais de 50 anos, i.e., cerca de 39% dos 127 mil ao serviço do ME. Este valor contrasta fortemente com os cerca de 15% que podemos estimar entre 85 e 90, a partir dos dados publicados pela Comissão Europeia em 96.

A condição docente e a crise dos sistemas
A evolução recente dos sistemas educativos comportou importantes sinais mudança, que poderíamos enumerar sumariamente: alterações significativas dos contextos, instrumentos e modelos de ensino; regressão demográfica generalizada, influindo dramaticamente na demografia dos recursos humanos da educação e favorecendo novos impulsos para a formação ao longo da vida e para a certificação das competências dos activos; debate generalizado sobre a parte que cabe à transmissão de conhecimentos e à inculcação de valores na esfera da educação formal; reorientações curriculares dirigidas para uma crescente valorização das ciências e tecnologias e das formações profissionais.
Paralelamente, e para citar Guy Neave7, era possível detectar no início da década passada, três importantes elementos de crise. Em primeiro lugar, o desafio à autoridade dos professores em matéria de definição de prioridades e finalidades para a educação. Industriais, empresários, associações de pais, etc., cada um com sua agenda específica, reclamam da escola diferentes outputs.
Em segundo lugar, a prioridade, em matéria de políticas educativas, já não reside nas questões da igualdade mas transfere-se para as questões da qualidade (e da avaliação).
Em terceiro lugar, a procura de mais eficientes modelos de educação, leva a buscar inspiração nos sistemas económicos de outros países, e particularmente nas práticas de selecção, competição e estilos educativos supostamente prevalecentes nos respectivos sistemas de ensino.
Tudo converge, deste modo, para que se instale uma profunda crise, estrategicamente amplificada como crise da confiança do público nos professores, nos pedagogos, etc. Ora, é impossível não relacionar as expressões retóricas de tal crise, quaisquer que sejam as suas causas reais, com a multiplicação das medidas funcionalmente subordinadas ao equilíbrio das contas do Estado. E será admissível sustentar que, vistas as coisas nesta perspectiva, tais medidas não têm como finalidade primordial melhorar o desempenho do sistema.
Resta, assim, a iniludível impressão de que alguma coisa se perde com a tradução dos ‘bons exemplos’ para português vernáculo. Talvez o fundamental: a continuidade e o consenso que asseguram a estabilidade das comunidades políticas, favorecem a autoridade da escola e sustentam a crença no acto educativo.


_______________________________________________________________________________
[1] Organização conjunta do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento e da Fundação Friedrich Ebert, com o apoio da Fundação Gulbenkian, teve lugar em 24.2.07.
2 Gita Steiner-Khamsi, «Transferring education, displacing reforms», in Schriewer, J. (ed.) Discourse Formation in Comparative Education, Peter Lang Verlag, 2000, p 165. As citações seguintes serão referidas à respectiva página.
3 Key topics in education in Europe, Report III – Working conditions and pay, Eurydice, 2003.
4 Com o Liechtenstein e a Islândia, integra o núcleo dos países da EFTA que pertencem ao espaço económico europeu e são tratados neste estudo (excluída está apenas a Suíça).
5 Comissão Europeia, Os números-chave da Educação na União Europeia – 95, Luxemburgo – Serviço das Publicações Oficiais das Comunidades Europeias, 1996.
6 Estudo sobre a reorganização da carreira docente do Ministério da Educação – relatório final, Dez. 2005.
7 The teaching nation. Prospects for teachers in the European Community, Pergamon Press, 1992.


*Professor do Ensino Secundário

Publicado no Jornal de Letras - Educação - Abril 2007

Comments:
Apreciei..São formas diferentes de perspectivar o ensino.Não há razão nenhuma para Portugal apresentar os valores do PISA tão negativos.Abraço
 
Enviar um comentário

<< Home