Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

13.6.05
 
Guerra à “educação sexual” inexistente
Um estudo de António Sicrano veio revelar que a guerra declarada pela Região Autónoma das Berlengas à República dos Canarinhos já provocou 300 mortos, 2.000 feridos e incalculáveis perdas materiais. O Estado Português tem dado cobertura a este conflito como se prova pelos mapas, fotos e ilustrações aqui incluídos. (Seguem-se duas fotos das Berlengas, uma da partida do paquete Funchal da doca de Alcântara e três de soldados vietnamitas feridos).

A esta notícia publicada num prestigiadíssimo semanário que nunca se engana e raramente tem dúvidas, seguiram-se editoriais inflamados dos mais importantes diários da nação: o jovem director do Diário das Novidades titulou : "Ao que isto chegou !" e o veterano director do "Audiências" ripostou: "Agora é que a Nação está mesmo em risco !"

O número seguinte do prestigiadíssimo semanário incluía uma declaração do MNE negando a existência de qualquer conflito com a República de Canarinhos - "que aliás julgamos inexistente", dizia o sorridente porta-voz, acrescentando que em breve iriam confirmá-lo na Internet - e muito menos por parte das Berlengas ainda não promovidas a Região Autónoma. Segue-se portanto que não houve 300 mortos nem 2.000 feridos nem danos materiais. De qualquer forma, uma avaliação da situação será pedida ao Conselho Superior de Defesa Nacional.

O semanário que nunca se engana e raramente tem dúvidas interrogava-se pertinentemente, cheio de boa fé e ingenuidade, "mas se nada existe que vai o Conselho avaliar?"

E publicava nova peça destinada a demonstrar a existência de uma perigosa conspiração para desencadear a terceira guerra mundial. Tratava-se de um texto do famoso psicólogo e investigador americano A. B. C. Smith que, tendo publicado 45 obras em colaboração com S. Freud, 37 em colaboração com J. Piaget e 29 em colaboração com Skinner, vem agora reconhecer que o seu trabalho foi pior que inútil, perigosíssimo : tendo experimentado os seus métodos, na famigerada década de 60, num quartel do Alabama, junto de 50.000 robustos e viris soldados, metade fugiram assim que a experiência lhes colocou um canhão pela frente. A sorte da outra metade não foi melhor: transformaram o quartel numa sala de sauna e massagem destinada a recolher os fugitivos de S. Francisco.
Esta mensagem foi também posta a circular na Internet juntamente com uma declaração do famoso professor americano: "Estive a consultar o manual de instruções guerreiras de Portugal ( eu até leio um bocado de espanhol, tive uma criada hispânica que infelizmente acabou por ser extraditada para o México por falta de uns papelitos) e pude constatar que é o manual que mais de perto sofre as minhas influências desses tempos de drogas, sexo livre e comida vegetariana. Cuidado! Queimem-no já !"

O nosso prestigiado semanário prosseguiu a sua campanha exigindo que fossem apuradas responsabilidades, descobertos e devidamente castigados o/s autor/es do perigosíssimo manual."Só assim, com exigência e rigor, podemos combater o facilitismo, laxismo e falta de exigência que nos colocam na cauda do mundo civilizado e impedem a paz mundial, o progresso económico, a castidade e os bons costumes", concluía.

Após reunião do Conselho de Ministros, o Primeiro-Ministro veio confirmar que realmente não havia guerra, não havia república dos Canarinhos, não havia região autónoma das Berlengas e não havia manual nenhum. (Sobre o professor americano não se pronunciava para evitar conflitos internacionais). De qualquer forma e além do relatório de avaliação da situação já pedido ao Conselho Superior de Defesa, iria nomear uma comissão de “espertos” para prepararem o referido conflito. E o MNE renovaria os contratos com as várias empresas fornecedoras de armas e de notícias. (Tratar-se-ia de uma associação sem fins lucrativos, criada na sequência destes distúrbios e intitulada "Pim, Pam, Pum" pela sua sonoridade bélica e conotações lúdicas e infantis; e de uma ONG, chamada "Unidos pela Paz", da qual o autor do estudo revelador da guerra agora negada é dirigente).

Tudo está bem quando acaba bem.

Qualquer semelhança com a realidade não passa de pura coincidência. Não há guerra, não há região autónoma das Berlengas, não há República dos Canarinhos, não há manual guerreiro, não existem as associações "Pim, Pam , Pum" e "Unidos pela Paz", e eu não acredito em bruxas … pero que las hay, las hay!

Não foi mais ou menos assim que nas últimas semanas se desencadeou uma campanha contra uma disciplina, um programa, um manual e uma prática escolar que afinal ninguém conhece?

Maria Emília Brederode Santos

Publicado no jornal A Capital a 12 de Junho

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