Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

4.7.05
 
Cidadania rima com educação
Os processos de desenvolvimento local, em que as comunidades procuram e constróem respostas para os seus problemas a partir das suas próprias capacidades e, portanto, do reforço da sua autonomia, instituem-se como processos privilegiados de aprendizagem colectiva. É no contexto de processos deste tipo que cidadania e educação estão condenados a coincidir. É desta temática que se ocupa a obra intitulada “Inovação, cidadania e desenvolvimento local”, organizada por José Alberto Correia e Rui d’Espiney, editada pelo Instituto das Comunidades Educativas (ICE). O livro apresenta, por um lado, algumas experiências de intervenção local em que as dimensões educativas são potenciadas por dinâmicas fortes de participação, de que é exemplo a experiência de “orçamento participativo” desenvolvido na Câmara Municipal de Palmela, num texto assinado por Ana Vicente. Por outro lado, a obra reúne um conjunto muito diversificado de textos, da autoria de um leque muito alargado de autores, que reflectem sobre temas como: a relação entre a saúde e o desenvolvimento (António Cardoso Ferreira e J. Diegues), processos de animação comunitária (Orlando Garcia), Associativismo (Manuel Matos), educação ambiental (Philippe Meirieu) ou educação no meio rural (Rui d’Espiney).
Um dos aspectos mais estimulantes da leitura deste livro corresponde ao modo como, ao mesmo tempo que valoriza a acção concreta, produz um exercício de análise crítica sobre o vocabulário utilizado e que, uma vez entrado na linguagem comum como objecto de “consenso”, tende a transformar-se em slogans vazios de sentido. Sobre a importância desta reflexão relativamente ao modo como pensamos com as palavras, é de destacar o notável texto assinado por Mia Couto e que nos convida a sermos produtores e não meros consumidores do pensamento alheio sobre os problemas que nos dizem respeito. Este esforço de elucidação é igualmente marcante nos textos da autoria de José Alberto Correia, quer na nota de introdução, quer no texto em que (com João Caramelo) desenvolve a noção de “cosmopolitismo comunitário”. Mas talvez a chave para compreender como podem rimar educação e cidadania tenha de ser encontrada nas questões fundadoras que, num texto a ler atentamente, Guy Berger equaciona: o que são, e como se articulam de modo fértil, a democracia, a participação e a cidadania? Não haverá, nunca, respostas definitivas para estas questões, mas estamos condenados a procurá-las e construí-las, num trabalho sempre inacabado que combina uma dimensão teórica e uma dimensão prática, contra uma estrutura social que tende a querer fechar-nos “num presente sem futuros”. A importância deste livro para os que se empenham numa acção educativa de sentido transformador reside no seu contributo para contrariar o conformismo e nos incentivar a problematizar o futuro. Como escreveu Ivan Illich, a mudança social começa quando se instala no cidadão a dúvida. A leitura e divulgação deste livro pode ser um bom princípio.
Resta assinalar que o local escolhido para a apresentação pública da obra, perante um auditório repleto e atento, não poderia ter sido mais feliz: o, recentemente criado, Museu da Cidade de Almada, edifício belo e funcional, onde os interessados poderão visitar uma exposição, “ir à escola” sobre a história do ensino em Almada, da qual foi editado um excelente catálogo.

Rui Canário

Publicado no jornal A Capital a 3 de Julho

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