Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

24.11.05
 
Autonomia das escolas: entre a ficção e a realidade*
“Quem dá e tira ao inferno gira!” “De boas intenções está o inferno cheio!” “Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo, ou não sabe da arte!”.

Se a sabedoria popular fala verdade, os ministros da Educação e os dirigentes da sua administração, não são tolos, sabem da arte e vão direitinhos para o inferno!
Esta é a conclusão a que se pode chegar quando se analisa, por exemplo, a retórica discursiva que recorrentemente, hoje, como no passado, apregoa os méritos da autonomia das escolas, ao mesmo tempo que tudo faz para aumentar o controlo sobre as suas decisões.
Como escrevia, num texto recente (publicado em 2004, no vol. 17, nº 2 da Revista Portuguesa de Educação da Universidade do Minho), a autonomia das escolas tem sido apresentada, em Portugal e em outros países, como “uma ficção necessária”, mas, em muitos casos, não passou de uma “mistificação” legal, mais para “legitimar”os objectivos de controlo por parte do governo e da sua administração, do que para “libertar” as escolas e promover a capacidade de decisão dos seus órgãos de gestão.
Importa sublinhar que esta situação não resulta de qualquer perversidade endémica aos sucessivos titulares da pasta da Educação, mas faz parte de uma estratégia política mais global de recomposição do poder, por parte de um Estado em perda de autoridade, em busca de legitimidade e em processo de modernização.
Neste contexto, as medidas de “reforço da autonomia das escolas” podem assumir diferentes objectivos e modalidades de concretização, em função de diferentes perspectivas políticas. Se repararmos no que se passa em muitos países, neste domínio, verificamos que predomina (por convicção ou contaminação) uma política híbrida e aparentemente contraditória que consiste em: esconder atrás do discurso da mudança (contra a burocracia e o centralismo), uma política conservadora (“é preciso mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma”); esconder atrás do discurso da modernização (pela qualidade e pela eficácia), uma política neo-liberal (é preciso “aliviar” o Estado para acabar com o Estado).
Ora, como nos tempos que correm e segundo nos dizem, “mudar é uma fatalidade” e “modernizar é o nosso destino”, logo se vê o que aconteceu à pobre “autonomia”!
Importa lembrar, porém, como venho fazendo há mais de dez anos, que nestas coisas da autonomia das escolas “há mais vida”, além do Estado e do mercado e que a alternativa não se resume a ter que escolher entre a ineficácia (da burocracia estatal), ou a injustiça (da livre concorrência mercantil). As propostas que, em 1996, fiz num estudo encomendado pelo então ministro Marçal Grilo, demarcavam-se claramente dessa falsa dicotomia. Estas propostas fundamentavam-se num conjunto de pressupostos e princípios que visavam promover e apoiar uma “uma autonomia construída” pelos próprios actores e que tinham na “contratualização” um instrumento central para a sua concretização. Como se sabe, no processo de decisão que se seguiu, para imposição de uma “autonomia decretada”, os “princípios” perderam-se e os contratos ficaram “a fazer de conta”. O que resta hoje (7 ministros e 7 anos depois) é uma manta de retalhos, ainda por cima curta, que ora destapa a cara, ora os pés dos problemas que pretende esconder.
Agora que os governantes já não falam em “dar” autonomia às escolas, é talvez chegada a altura de as escolas a exigirem e a construírem.


João Barroso
Universidade de Lisboa

*Publicado no Jornal de Letras - Educação - 23 de Novembro de 2005

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