Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

7.12.05
 
Com a devida vénia a Kafka
Luísa viu-se, no seu sonho, no centro de uma sala de paredes nuas e frias deparedes altíssimas. Um som de passos uma colega. Temos a reunião do projecto curricular. Linhas prioritárias de actuação, como trabalhamos?, construção do projecto curricular de turma. Turma? Tenho cinco turmas de Português. 150 alunos. 5 linhas prioritárias de actuação, 5 planificações de actividades, 5 construções dos projectos curriculares, 5 reuniões de grupo disciplinar vezes o número de vezes que as teremos que fazer e escrever. Tudo escrito caros Colegas! Tem que ficar escrito. se vier cá o inspector quer ver. E as áreas curriculares não disciplinares (vezes cinco) e a promoção de práticas pedagógicas que desenvolvam nos alunos métodos de trabalho (vezes cinco) e a implementação vertical e horizontal dos currículos(vezes cinco) e a articulação entre o básico e secundário (vezes cinco). A sala ia-se enchendode bocas que falavam e cada uma debitava. Eu nesta turma acho que deveríamos arranjar, com a colaboração do colega de Visual, uma exposição de sólidos platónicos, eu acho que deveríamos fazer um trabalho a partir do livro de Ilse Losa com o professor de História com ilustrações feitas pela Educ.Visual e depois faríamos uma exposição. Luisa começou a fazer quadros de dupla entrada freneticamente em que estas propostas iam entrando numa onda cada vez mais avassaladora e os quadros nunca eram demais , mesmo feitos acomputador, os seus dedos mexiam-se freneticamente e o número de bocas ia aumentando ocupando toda a sala, e a distribuição da carga horária e a distribuição do serviço docente. de repente todas as bocas se calaram e entrou um sujeito muito alto e esguio vestido de preto que falouem voz monocórdica e metálica. Reunião do Plano Anual de actividades. Um quadro com Coordenadas gerais, Objectivos, Actividades, Recursos, Calendarização eAvaliação. Há 3 coordenadas vezes 8 departamentos 1 serviço especializado de apoio educativo, 3 x 9 = 27. 27 entradas vezes 6 colunas, 162 células de texto. Agora as células ganhavam vida e engordavam engolindo cada vez mais palavras. E se tivermos que alterar isto ao longo do ano? Tudo parou. Abruptamente instalou-se um silêncio pesado. O senhor vestido de preto falou. Nada disto se altera. Isto é como um plano quinquenal só que é anual. Nada se altera e se alguma coisa o obrigar a mudar, muda-se a coisa mas oplano fica. E as bocas voltaram ao seu falar frenético. Luisa timidamente.Tenho alunos nas minhas cinco turmas que não evoluem. Aplica-se o despacho normativo 50/2005. Para cada aluno fazer um plano de recuperação, com pedagogia diferenciada na sala de aula, programas de tutoria, actividades de compensação, aulas de recuperação, actividades de ensino específico de língua portuguesa e há também os planos de acompanhamento e se for um aluno de retenção repetida então teremos que ver o processo individual do aluno,os apoios e actividades de enriquecimento curricular e planos aplicados e os contactos estabelecidos com os enccarregados de educação e o parecer dosserviços de psicologia e a proposta de encaminhamento do aluno para um planode acompanhamento e há ainda a programação individualizada e o itinerário deformação do aluno com o acordo prévio do encarregado de educação. E tudoescrito. Tenho cerca de dez alunos por turma nessas condições. Os números bailavam à frente dos olhos de Luísa 10 x 5 + 10 x 50. 100 itens, 100 folhas escritas. As 100 folhas transformavam-se em 200, em 300 e Luisa quase sufocava à medida que ia tentando manter-se à tona naquele mar de folhas. Luisa esbacejava e gritava. Mas que plano para os alunos que me chegaram à turma do 7º ano e que não sabem ler? E os que têm pais presos. E os que vivem na barraca com pais toxicodependentes? Luisa gritava cada vez mais e esbracejava freneticamente e as folhas continuavam a cair. Uma boca enormegritava-lhe. Preencher modelo 024/36/2004 da editorial do ministério e se for aluno com deficiência, modelo 098/34//2005. Atenção que neste caso temque ter a aprovação do Enc. de Educação e vai depois à Direcção regional. Lentamente a agitação foi diminuindo e Luisa, exausta, estendeu-se no cimo de uma imensa pilha de papéis. Lentamente insinuaram-se os mapas estatísticos do GIASE. A secretaria não pode fazer isto tudo. Os colegas têm que preencher isto para cada turma, número de crianças a frequentar, segundo a vez de inscrição, por idade e sexo, número de crianças a frequentar, segundo a idade e sexo e país de origem e segundo o ano de escolaridade, poridade e sexo, e segundo ano de escolaridade por língua estrangeira e por área curricular disciplinar de frequência facultativa e por educação artística e tecnológica e por grupo cultural e étnico. E os números iam fluindo por cabo para dezenas de computadores centrais onde funcionários comenormes mangas de alpaca sorridentes sem se mexerem viam entrar a torrentede dados que meticulosamente deitavam fora. Finalmente, no topo da sala, Luisa pôde olhar lá para fora e viu um aluno que olhava sem expressão para aquela torre donde esvoaçavam papéis. O aluno deteve-se ainda algum tempo e, depois, virou costas e foi-se embora. Lentamente.

João Rangel de Lima

Comments:
Finalmente, o texto que urgia! Não é preciso enviar para as escolas, que nós reconhecemos a descrição, mas, por favor, consiga que o publiquem nos jornais!
 
Faço minhas as palavras da Isabel
 
Há tempos, num blog de um professor estava um outro texto dentro da mems linha que achei fantástico, tal como este...só para o relembrar (com a permissão do autor...):

Pequenos deuses da pedagogia de papel

Imperturbáveis no seu limbo de retórica, eles vão criando as suas teorias de papel e de papéis. E chamam-lhes ciência, para que a si próprios se possam chamar cientistas, ignorando, porém, que a ciência não se faz de dogmas, e que a verdade, em ciência, é, por natureza transitória e sujeita a um permanente confronto com a realidade.
Depois vem os papeis-suporte das suas teorias de papel:, as grelhas, os organigramas; os pees,os paes,os pcts...e damos todos um profundo mergulho nestas águas turvas duma pseudociencia inventada, sentindo-nos afogados neste habitat poluído, que não é o nosso, mas do qual não possuímos as forças necessárias para fugir.
São os deuses da "pedagogia dos papéis", os que elaboram teses extraídas de papéis que geram elas próprias novos papeis donde nascerão novas teses de papel...continuando este processo interminavelmente, para auto satisfação e auto-justificação dos seus deuses criadores.
São eles também os donos dos centros de formação, onde pseudo formadores formados à pressão, papagueiam aquilo que ouviram dizer aos ditos deuses, sendo tanto melhores pseudoformadadores, quanto melhor souberem papaguear sem se enganarem, nem se rirem, do que papagueiam.
E no fim desta cadeia estás tu. Tu que tens a experiência do real, que só é valorizada, porém, se eventualmente se enquadrar no pensamento daqueles a quem é reconhecido o direito ao pensamento.
E questionas-te de porque se terá esquecido a troca de experiências do real preferindo-se, em vez desta, o esquematicismo dos formulários cheios de frases mas ocos de conteúdo utilmente aplicável, porque são feitos, não para que se apliquem, mas para que conste como prova do pedagogicamente correcto o simples acto de terem sido feitos.
E, entretanto, o tempo vai mostrando o engano dos deuses...quando o resultado obtido pela aplicação das teses dominantes não é o prometido...
Os deuses, então, culpam-te a ti, incompetente mortal, de teres aplicado mal as suas brilhantes doutrinas...enquanto, silenciosamente, as põem de parte, para inventarem outras novas, que estas sim, passarão a ser agora, o novo catecismo que te impingem!
E lá voltas tu a ter de fazer novo pee, pei, pii, poo, ptu, pll... e a PQosP a todos!

Achoq eu ambos mereciam divulgação...Fabulosos
 
Sátira excelente! só é pena que reflicta a realidade de muitas das escolas portuguesas...e que cada vez mais afogados em burocracia não possamos dedicar-nos ao essencial da educação que é ensinarmos os jovens a pensar, através das divessas disciplinas!
As Ciências da Educação são em grande parte responsáveis pelo actual estado de coisas!Segundo os "especialistas" o que é importante para os jovens é "aprender a aprender",embora ainda não perceba bem como é que se pode ter sucesso na aprendizagem sem esforço,sem dedicação e apenas com diversão!!!É a cultura do facilitismo encapuçada por essa panóplia de grelhas e planos que vai conduzir Portugal ao sucesso educativo (estatístico)mas o que interessa são os dados que possamos enviar para a OCDE não é assim?!!!
 
Sátira excelente! só é pena que reflicta a realidade de muitas das escolas portuguesas...e que cada vez mais afogados em burocracia não possamos dedicar-nos ao essencial da educação que é ensinarmos os jovens a pensar, através das divessas disciplinas!
As Ciências da Educação são em grande parte responsáveis pelo actual estado de coisas!Segundo os "especialistas" o que é importante para os jovens é "aprender a aprender",embora ainda não perceba bem como é que se pode ter sucesso na aprendizagem sem esforço,sem dedicação e apenas com diversão!!!É a cultura do facilitismo encapuçada por essa panóplia de grelhas e planos que vai conduzir Portugal ao sucesso educativo (estatístico)mas o que interessa são os dados que possamos enviar para a OCDE não é assim?!!!

HSilva
 
tambem eu faço minhas as palavras da isabel e do miguel
 
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