Inquietações Pedagógicas
"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…" Jorge de Sena in Metamorfoses
26.1.06
Da imensa fragilidade
Maria João Leote de Carvalho
“…faz pena, faz mágoa, que ave de penas não possa voar”
Zeca Afonso
Artur (nome fictício) tem actualmente oito anos. Filho único de pais toxicodependentes foi abandonado pelo pai logo depois do seu nascimento e ficou a viver com a mãe e a avó materna em bairro de construção ilegal na Área Metropolitana de Lisboa. Tinha perto de quatro anos quando a casa abarracada em que viviam foi destruída por um incêndio. Todos os bens foram consumidos pelo fogo e a família foi realojada num andar arrendado em bairro de habitação social.
Ao fim de alguns meses, a mãe perdeu o emprego que tinha como operária numa em fábrica ali próximo. Não muito tempo depois, a avó encontrou droga em casa e confrontou a filha, na altura com 26 anos. Esta optou por fugir de casa, levando consigo o filho. Numa primeira fase, ficou a viver junto do pai do Artur, num bairro de habitação social na Margem Sul. Poucas semanas depois, a mãe abandonou a criança, deixando-a com o pai, que mantinha o consumo de drogas.
Durante quatro meses o Artur, então com cerca de cinco anos, acabou por viver mais entregue a si próprio junto de outras crianças e de jovens, cujos laços comuns passavam pela vivência na rua. Por diversas vezes o pai levou-o consigo, envolvendo-o em práticas criminais que ele ainda descreve com especial detalhe.
Uma vizinha da avó, em visita a familiares nesse bairro, veio casualmente a identificar a presença do Artur na rua, transmitindo-lhe a sua preocupação. Ao tomar conhecimento da situação do neto, a avó, logo no dia seguinte foi procurá-lo, para o trazer para casa.
Pai e mãe continuaram sem contactar a criança ou qualquer outro familiar. A mãe apenas efectuou uma visita inesperada de poucas horas em Fevereiro de 2004 prometendo que regressaria brevemente.
“-Tenho uma mãe que não gosta de mim, tenho um pai que não quer saber de mim” são expressões que frequentemente referia nessa altura à avó. Quando abordado por esta sobre a eventualidade de ter de regressar ao bairro onde se presume o pai ainda viva, irrompia nervosamente em lágrimas dizendo não querer.
Várias vezes foi surpreendido pela avó a enrolar papéis, como se estivesse a fazer cigarros, questionando-a sobre drogas.
“-O meu neto já está estragado, já não sei o que fazer dele, está estragado e não vai ter futuro!”, desabafava frequentemente a avó. Na altura, trabalhava como empregada de limpezas no turno da noite, sendo que ela e o neto viviam sozinhos. Quando ia trabalhar, depois de lhe dar jantar, deixava-o a dormir em casa de uma prima no mesmo bairro.
Ao ingressar no 1º ano de escolaridade, a escola informou do caso a Comissão de Protecção da área de residência, por forma a que a tutela fosse atribuída à avó, uma vez que se tinham esgotadas as hipóteses dela poder beneficiar de maior apoio social junto dos serviços da comunidade sem ter esta situação oficialmente resolvida. Passou então a beneficiar de Medida de Apoio Junto a Outro Familiar por parte da Comissão e foram activados recursos tendo em vista a superação de maiores dificuldades (alimentação, saúde, documentação). Simultaneamente teve lugar a abertura de processo tutelar cível no Tribunal de Família e Menores para a atribuição da tutela.
No início de mais um ano lectivo, a avó deixou de confiar na prima e começou a deixar o Artur sozinho durante toda a noite. De manhã cedo, ligava-lhe pelo telemóvel de modo a que chegasse à escola a horas. A situação foi prontamente detectada pelas professoras e o Artur teve de ser acolhido de emergência em instituição.
Apesar da avó manifestar grande interesse e gosto pelo seu trabalho não desejando, ela própria, a mudança de turno, à semelhança do que já acontecera antes da institucionalização, foi novamente tentada a passagem para o turno de dia, mas parte do problema mantinha-se: teria de sair de manhã bem cedo e voltaria pelo final da tarde. No bairro não encontrava ninguém da sua confiança a quem deixasse ficar o Artur. A mudança para outro emprego ainda se tornava mais difícil e as propostas encontradas agravariam a sua condição socioeconómica. A possibilidade de poder vir a ser abrangida por algum subsídio por outros serviços sociais não era garantida dado o seu escalão de vencimento, para além de qualquer resposta ainda demorar.
Entretanto, na semana a seguir ao Natal, a mãe de Artur “reapareceu”, trazendo consigo uma filha recém-nascida, fruto de relação com um novo companheiro.
Deste modo, na ausência de uma alteração das condições de vida da avó e por a mãe continuar sem manifestar interesse pelo filho, a medida de acolhimento institucional tinha de se manter.
A mãe de Artur nunca o visitou na instituição e não tem feito esforço de maior aproximação. Actualmente está novamente grávida. Artur rejeita falar sobre este assunto e nega que vá ter outro irmão. O seu comportamento tem vindo a revelar--se indisciplinado e agressivo quer para com colegas, quer para com adultos.
Refere que nenhum polícia o irá apanhar porque “sei fugir da polícia, o meu pai ensinou-me a fugir da polícia e eu fujo quando for preciso. Ninguém me apanha!”.
Depois de lermos a história do Artur fica-nos a questão: e agora? Optámos aqui, em jeito de nota de rodapé, por deixar algumas interrogações
- até que ponto nós, sociedade civil, estamos capazes de agir em tempo útil, atentos, solidários e sensíveis a cada criança e jovem;
- até que ponto as instituições de acolhimento de menores, estão em situação de responder aos seus direitos e de promover os seus verdadeiros interesses e necessidades com qualidade ética, afectiva e cultural.
Se estas condições não existirem, estamos a inviabilizar a esperança de tantos meninos. Porque eles desejam apenas crescer e inserir-se socialmente. Fazem-no muitas vezes desajeitadamente. Precisam de quem os acompanhe com competência, cuidado, exigência e empatia, nos seus jeitos e nos seus gestos.
Publicado no Jornal de Letras - Educação - 19 de Janeiro de 2006