Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

27.1.06
 
Não poderá ser diferente?
Em Portugal existem cerca de 15.000 crianças e jovens institucionalizados, colocados pelo Ministério da Justiça, pela Segurança Social ou ainda por pedido directo das famílias por razões de pobreza e fome, riscos de negligência, de abuso sexual ou outros, por dificuldades várias, nomeadamente educativas, habitacionais, económicas.São, na generalidade, histórias de vida dificéis, sofridas, com separações precoces, rupturas, abandono e com marcas deixadas nestas crianças e jovens.Os trajectos de exclusão percorridos falam de crianças e jovens com várias mudanças de locais de residência e muitos anos de internamento. A institucionalização produz, por si só, uma segregação cultural e isolamento social marcante para os indivíduos e presente nas representações sociais.Embora existam nos internatos situações muito diferenciadas, desde os que funcionam razoavelmente até às situações revoltantes, a maioria destas instituições é má e contraria os direitos sociais.Se reflectirmos nas condições sócio-institucionais encontramos instituições grandes, pesadas, rígidas, frias, com espaços e decoração não personalizados, atravessados pela imobilidade do tempo.As crianças e os jovens são olhadas de forma rígida e dicotómica entre os bons e os maus, os atinados e desatinados, os sossegados e os violentos, os que merecem ou não o bem que se lhes faz. O cenário e a narrativa produzem rotulações e facilitam uma comunicação paradoxal, insecurizante, desidentificadora.As rotinas instaladas repetem-se, indiferentes às transformações sociais e às necessidades das suas populações, organizando-se contra os imprevistos, o diferente, numa procura de ordem, controlo e vigilância.Algumas perspectivas de intervençãoEmbora consciente de que não há receitas apresento algumas reflexões, em aberto, sobre algumas perspectivas de intervenção.O Estado que tem o dever: de investir na prevenção social junto das famílias e contextos consideradas de risco; de repensar e flexibilizar o sistema de adopção; de promover estudos e investigações centrados na transformação das práticas; de divulgar experiências inovadoras.A institucionalização deverá ser evitada, concebível sobretudo numa situação transitória, numa crise enquanto se trabalha com as famílias ou em situações dramáticas e após serem esgotadas todas as alternativas possíveis para a substituição do meio familiar ( rede de vizinhança, outras famílias, usar e ousar recursos ainda não explorados).A criança e o jovem devem ser informados e ouvidos nas tomadas de decisão sobre as soluções para a sua situação de vida. A escolha de um tutor, gestor de caso, parece-me uma estratégia securizante e uma boa forma de mediação entre as instituições e as pessoas.Importante alternativa é o alojamento em pequenos apartamentos com apoio temporário ou permanente de profissionais (que podem ou não habitar em conjunto), espalhados na comunidade ou privilegiando locais específicos como as residências universitárias.Centros residenciaisCostumo dizer que as regras de ouro são: a melhor qualidade para quem mais na vida sofreu e quanto menos internato melhor. Isto é - os internatos têm que se reconverter em centros residenciais com uma nova filosofia e missão social, outros princípios orientadores e organizacionais.Instituições pequenas, núcleos residenciais com dimensão humanizada e agradável ou ainda instituições grandes mas adaptadas ao conforto, convívio e bem estar de quem lá vive.Este espaço de vida deve ser sentido como terreno sereno e estruturante do desenvolvimento pessoal e social, reparador dos abandonos, fragilidades e lutos. A generosidade, a amabilidade, a solidariedade devem consubstanciar-se no ambiente institucional.A instituição devera integrar profissionais homens e mulheres da área socio-educativa. O quotidiano deve valorizar e promover a autonomia e a auto-estima, a assertividade, a capacidade de antecipação e a resolução de problemas bem como as amizades e interrelações no grupo.A equipa técnica deve trabalhar com o jovem e a família sobre os projectos de futuro e os processos construtores de autonomia pessoal, social e profissional dos seus jovens.À excepção das situações em que os pais foram impedidos de exercer o seu poder paternal eles devem ser informados periodicamente sobre os filhos, devem reunir e participar com a equipa técnica nas principais tomadas de decisão. A instituição deve criar condições facilitadoras da articulação com a família biológica e outras rectaguardas afectivas. A criança deve sentir que a sua família é reconhecida como interlocutora. As instituições enquanto espaços sociais devem ser abertas, integradas na comunidade envolvente, participantes activas na vida comunitária.É importante proporcionar actividades artísticas e lúdicas que permitam conviver, fantasiar, aventurar, teatralizar, experenciando emoções e exteriorizando dificuldades em actividades corporais e de movimento que sejam positivas e gratificantes.Proporcionar espaços de debate e confronto de ideias, onde em grupo, crianças e jovens possam amadurecer e compreender o mundo. É importante criar lugares de palavra, espaços de reflexão, de ler e pensar a realidade e de antecipação sobre os comportamentos, valorizando uma reflexão ética sobre a sociedade em que se vive.A instituição terá que se congregar à volta de um projecto educativo centrado em princípios éticos e desenvolvimentistas com modalidades democráticas de participação, num regulamento onde estejam claramente expressos os direitos e deveres e num planeamento estratégico organizado em função das grandes finalidades.As instituições públicas devem ter uma gestão idêntica às das outras instituições sociais ( com representantes autárquicos, cidadãos notáveis …), sendo desejável haver limitação dos mandatos das direcções.ResponsabilidadesO Estado deve ter responsabilidade pelos internatos que estão directamente sob a sua tutela, por aqueles que têm acordos de cooperação, mas também por todos os outros, mesmo que não tenham protocolo com a Segurança Social pois o Estado tem que defender todos os seus cidadãos.Todavia, a responsabilidade estatal deverá ser sinergicamente partilhada com a sociedade civil, perspectivando a comunidade como espaço relacional, cultural e educativo, implicando instituições sociais e movimentos cívicos.O fundamental é introduzir sentimentos, compreensões, estratégias e narrativas que nos permitam situar a problemática num novo paradigma centrado nos direitos das crianças e dos jovens, numa lógica de realização pessoal, de bem estar e de vida feliz.Temos que situar esta problemática na ordem do dia, mobilizando causas, desocultando situações dramáticas, lutando contra a banalização e a resignação, conscientizando, exigindo políticas de justiça e de equidade e implementando intervenções cívicas centradas na contemporaniedade e nos direitos civilizacionais.

Milice Ribeiro dos Santos

Publicado no Jornal de Letras - Educação - 19 de Janeiro de 2006

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