Inquietações Pedagógicas
"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…" Jorge de Sena in Metamorfoses
29.1.06
UM RAPAZ DENTRO DA LEI *
1. Demorámos a chegar. Já era noite fechada. Os polícias não conseguiam encontrar o caminho. Era tal qual uma viagem sem regresso. Foram-me buscar á escola. Fiquei que tempos à espera numa sala, disseram que estavam á procura de um colégio. Às tantas vieram dizer-me que afinal ia para uma Casa de Emergência e que quando lá chegasse logo explicavam tudo. Tanto me faz. Agora tanto faz. Houve tempo em que quis ter futuro. Agora desisti. Quando os polícias chegaram à escola ainda pensei que podia ser por causa dela. Podia ter aparecido morta. Mas o meu coração não se abriu. O meu pai às vezes chorava. Dizia que o choro faz tanta falta como o riso. Há já muitos anos que não choro. Para aí dois. Se choro fico um fraco e então é que todos me põem o pé em cima.
2. A casa mais parece um hospital. É muito grande e fria que eu sei lá. Os corredores nunca acabam. Se calhar alguém perder-se no meio da confusão de portas e portinhas deve dar em maluco. Os putos são cheios de mau aspecto e cheira aos quartos da pensão em que a gente dormia, quando ela ainda passava algum tempo ao pé de mim. Este maldito cheiro não me larga e olham todos para mim como se eu não batesse bem. Estou numa casa que nunca vi, nem sei onde fica a casa de banho, o refeitório é uma balda, os quartos a mesma coisa, estou quase a vomitar e querem que eu coma. Tudo por causa dela, que nem o nome de mãe merece.(….)
7. A noite traz o pior. As lembranças que matam. O tempo em que eu era muito pequeno. Ela na cozinha, bonita, sem droga. O cheiro da comida. A mãe do meu pai, a minha avó Cila também tinha comida cheirosa, só que não era a mesma coisa. O meu pai a cantar. A minha mãe a chamar-nos para a mesa e os meus passos muito pequeninos no corredor. E o meu pai a chegar à porta. Não aguento, eu não consigo aguentar. Ninguém percebe que não posso dormir. Tira-me as forças e eu preciso de ficar vivo. Se eu morro, acaba-se tudo. O meu pai, a minha mãe, a minha avó Cila. A minha família é boa. É a melhor que eu conheço.Fui à sala dos educadores e dei com a porta fechada. É o educador que passa as noites a dormir. Eu cá acho mal, há miúdos que até têm pena, mas eu não. É trabalho dele, se não queria não tivesse aceite. E ainda por cima está sempre a dar baldas aos outros, para eles não darem com a língua nos dentes. Rico trabalho, fecha a portinha e ferra no sono.Meu dito, meu feito, acordou estremunhado, todo nervoso, a perguntar porque que é que eu não estava a dormir, que não eram horas para eu andar por ali. Esta gente gosta mesmo de dar música. Depois queria enfiar-me um comprimido para os nervos. É o tomas! Disse-lhe logo onde havia de o meter. Pedi-lhe para levar o Rex, o cão, para a sala dos computadores. Disse que sim, o que ele queria era dormir em paz.(….)
13. Aqui é proibido bater. Só que andam sempre atrás de nós com regras. A gente não tem paciência para esta conversa. Regras para quê se a gente está cá de passagem. Depois vêem os castigos. A maior parte de nós não se importa. Mais castigo, menos castigo, para a vida da gente tanto faz. Eu tento levar a coisa sem problemas. Gosto de me dar ao respeito. Noutro dia baldei-me pela primeira vez, fui com o meia leca. Mas depois andei às voltas sozinho. Farto de drogados estou eu, se há coisa que quero é ver-me livre deles. Andei de lado para o outro, à minha maneira, sem ninguém a mandar vir. Viva a liberdade! Liberdade é uma palavra boa. Família é melhor, só que eu já não tenho. Quando cheguei a casa, os educadores aqui d’el rei, se eu não sabia que a droga não era vida para ninguém. Atirei logo um pontapé. Quem os mandou falar da minha mãe? Fiquei dois domingos sem sair. Isto é que são castigos? Se eu quisesse aprontar ainda aprontava melhor em casa. Às vezes os educadores fazem-me pena. Não sabem como fazer para a gente atinar.
Graça Vilhena
* Excerto de um texto a ser integrado em publicação no prelo sobre a Reforma do Direito de Menores
Publicado no Jornal de Letras - Educação - 19 de Janeiro de 2006