Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

29.3.06
 
"Eduquês", "cientês" e alguns porquês
Notícia do Público de 23 de Março

Carla Machado
A educação vai mal, já o sabemos. Os diagnósticos abundam, "novas" soluções recriam velhas receitas e sucessivas medidas vão sendo ensaiadas em sucessão tão vertiginosa que quando estamos a começar a compreender a última reforma já a seguinte está a ser - como agora se diz - "implementada". Neste palco de muitos arautos da verdade e poucos conhecedores do assunto, é agora moda o ataque ao dito "eduquês", tido como culpado do insucesso educativo e responsável pela cultura de facilitismo dominante. Não sendo especialista no assunto nem parte comprometida com nenhuma "escola", parece-me que há neste jogo de acusações algumas curiosidades e paradoxos. O discurso das ciências da educação tem apontado uma série de críticas à pedagogia tradicional, nomeadamente a sua centração no exame como instrumento avaliativo, o ensino expositivo, a falta de acompanhamento dos alunos ou a ênfase na reprodução como objectivo da aprendizagem. Parece-me difícil desmentir a verdade destas críticas: na escola - em todos os níveis de ensino - pululam docentes sem gosto em ensinar, que "despejam" conteúdos de forma totalmente indiferente a quem os ouve, para quem o aluno é pouco mais do que uma obrigação e que esperam que aqueles "papagueiem" a matéria tal e qual lhes saiu da boca... porque isso lhes dá lustro ao narcisismo ou simplesmente lhes reforça a convicção de que sabem algo que, possivelmente, terão lido num tempo imemorial que remonta ao momento em que saíram dos bancos da faculdade. Mas também é verdade que esta crítica pode ser confundida - justa ou talvez, em alguns casos, injustamente - com alguma dificuldade em assumir o papel de autoridade dos docentes ou com um discurso de vitimização do aluno, visto como um "bom selvagem" entregue aos desígnios dos "maus" educadores.Por sua vez, é fácil aos críticos do "eduquês" ganhar notoriedade, numa fase da vida política em que é de bom tom reivindicar a exigência e rigor e denunciar o facilitismo do passado (onde é que eu já ouvi isto?). Curiosamente, para tão árduos defensores do rigor, grande parte destes "novos educólogos" -- porque obviamente o tentam ser, dizendo que não o são (onde é que eu também já ouvi isto?) - tendem a apropriar mal os conceitos que usam, a confundir mudança da pedagogia com laxismo pedagógico, modificação das práticas avaliativas com inexistência de avaliação ou construção do conhecimento com o mito de que o aluno aprende sozinho. Tendem, também, na forma como recorrem de modo omnipresente à noção de ciência nos seus discursos (contrapondo-a ao "endoutrinamento ideológico" de que acusam os pedagogos), a incorrer numa outra falácia. É que é óbvio que esta argumentação - ainda que brilhante no plano retórico - não é mais do que isso: retórica disfarçada de cientificidade, a ciência transformada em argumento político e moral, usada como arma de arremesso.O que é curioso, nesta guerrilha verbal, é a aparente incapacidade de perceber que podemos simultaneamente ser críticos em relação aos docentes e à prática pedagógica e ser exigentes em relação aos alunos, sem colocar nem uns nem outros na posição de "vítimas do sistema". Na pior das hipóteses, a escola (desde o básico à universidade) está povoada de professores a contragosto e alunos que só lá estão porque a isso são obrigados, que jogam uns com os outros o jogo do "deixa andar". No melhor dos casos, temos professores que gostam de ensinar e são - por isso mesmo - exigentes, e alunos que percebem que estudar é prazer, mas também esforço e perda de outras gratificações mais imediatas.Construir a melhor destas alternativas exige o fim do "jogo do empurra" nas culpas pela educação e o entendimento de que a cultura de exigência tem que envolver alunos e professores, a ambos sendo pedido que façam o seu melhor: seja isso transformar a pedagogia ou envolver-se e esforçar-se no estudo. A culpa raramente é boa alavanca da mudança, seja sob a forma de má consciência, seja pela tendência de a imputar a terceiros. No meio deste jogo entre oponentes cegos a qualquer argumentação que não confirme o que já julgam saber, o desfecho típico é a inércia. Quem perde, como é óbvio, somos todos nós... Professora universitária







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