Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

17.3.06
 
Habilitações para a docência - interpretações inquietantes!
1. Estou perplexa! Estou estupefacta!
Ao fim de tantos anos a trabalhar e a “lutar” por dignificar o estatuto das professoras do 1ºCEB, acabo de ler e ouvir na comunicação social que está em cima da mesa, para discussão pública, uma proposta do Ministério da Educação sobre as habilitações para a docência de todos os níveis do ensino não superior em que se faz a clara distinção entre a formação inicial para educadores de infância e professores do 1ºCEB e os restantes professores. Ou seja, para os educadores de infância e para os professores do 1º Ciclo vai se exigido o grau de licenciatura (3 anos de ensino não superior que atribuirá o grau de licenciatura, segundo o tratado de Bolonha) e para os professores do 2º, 3º ciclos e secundário vai ser exigido o grau de mestre (3 anos + 2 de ensino superior, segundo o mesmo tratado de Bolonha).

2. Fiquei perplexa e estupefacta! (Ver PÚBLICO de 2006/03/14)

A ser verdade, esta proposta significa um retrocesso na qualificação profissional destes docentes, uma descrença na formação inicial proporcionada pelas instituições de ensino superior, uma visão muito romantizada da importância dos primeiros anos de escolaridade na formação e crescimento das crianças do nosso país: numa semana o governo reafirma uma aposta clara na qualificação do 1º ciclo do ensino básico (em que a formação inicial dos seus agentes é uma dimensão significativa), na semana seguinte, o mesmo governo divulga uma proposta sua sobre a formação dos profissionais deste nível de ensino que contradiz claramente a referida aposta.
Há pouco mais de 7 anos reformularam-se os currículos da formação inicial de professores e de educadoras de infância para que a estes profissionais passasse também a ser conferido o grau de licenciatura, reconhecendo assim as exigências da sua função educativa, cultural e social, e equiparando deste modo a respectiva formação académica à exigida aos docentes dos outros níveis do ensino não superior: 2º, 3º ciclos e secundário. Questionei-me ainda sobre a quem interessa esta hierarquização – num país como o nosso esta distinção não pode deixar de corresponder claramente a uma estratificação ou hierarquização social e a uma desvalorização daqueles grupos profissionais. Corresponde também a um certo pensamento reinante que considera que qualquer um/a pode ser educadora de infância ou professora primária, aproximando estas profissões do desempenho maternal da esfera privada e não lhes reconhecendo uma identidade, uma cultura e um desempenho profissional próprios aos quais são indispensáveis uma aquisição e um desenvolvimento de competências, eminentemente integradoras, quer do domínio relacional (afectivo e emocional) quer dos domínios científicos, artísticos, tecnológicos e humanísticos.

3. Fui procurar a referida proposta! Precisava de «ver para crer» – tal era a minha incredulidade!

Fui ler …
( http://www.min-edu.pt/ftp/docs_stats/Habilitações%20Prof%20Docencia_22_Fev_06.pdf )

4. E comecei por me interrogar … mas afinal quem é que não sabe ler nem interpretar?

Voltei a ler!

Não consegui encontrar naquela proposta nada do que vira escrito nem do que ouvira na comunicação social …

Encontrei antes uma proposta sobre a habilitação profissional para a docência de todos os professores do ensino não superior. Esta habilitação passará assim a ser constituída cumulativamente por três condições:
- o grau de licenciatura - conferido por uma instituição do ensino superior (as licenciaturas no nosso país passarão a ser conferidas no final de frequência com aprovação de 3 anos de ensino superior, segundo o tratado de Bolonha);
- um determinado número de ECTS (European Credit Transfer System), no ensino superior, na disciplina/área de conhecimento, ou em cada uma das disciplinas abrangidas por essa área disciplinar/curricular;
- aproveitamento num curso de formação profissional para o ensino, organizado segundo critérios definidos pelo ME, para cada um dos níveis de ensino, bem como nas diferentes áreas disciplinares.
Segundo esta mesma proposta, para efeitos de recrutamento, será ainda necessária a aprovação em provas nacionais de avaliação de conhecimentos e competências da responsabilidade do ME, de acordo com os currículos do ensino não superior em vigor

… continuava a não encontrar nada do que ouvira e lera na comunicação social…a clara distinção entre as exigências académicas para se ser educador de infância ou professor do 1ºciclo do ensino básico e para se ser docente dos outros níveis de ensino.

5. Continuei a ler…

Encontrei a clarificação e a explicitação dos princípios orientadores desta proposta:
a) Valorização da componente de conhecimento disciplinar;
b) Valorização da componente de prática profissional;
c) Dissociação da formação do acesso à profissão docente;
d) Modulação da formação;
e) Instituições de formação.

Princípios que poderão não ser facilmente compreensíveis por quem não está no meio nem próximo dele, mas, quando não se sabe o melhor é perguntar, indagar, investigar, …

Nesta parte do documento, no que se refere à componente da prática profissional, propõe-se que esta possa ser obtida num segundo ciclo de estudos superiores, ou seja depois da obtenção do grau de licenciatura. Não refere que tal seja apenas para o 2º, 3º ciclo ou secundário. Ou seja, pode acontecer o mesmo também para a educação de infância ou para o 1º ciclo do ensino básico.
Ainda nesta componente da prática pedagógica, diz-se que a mesma habilitará para mais de um ciclo de escolaridade, no 2º ciclo do ensino básico ao ensino secundário. E aqui sim se estabelece a diferença! … os educadores de infância e os professores do 1º CEB só poderão exercer apenas e só, respectivamente, nesses níveis de ensino, enquanto os restantes, com uma componente de formação claramente focalizada numa determinada área científica ou disciplinar, ficarão habilitados para mais de um ciclo de escolaridade. Acabam-se assim as formações iniciais das variantes, cursos estes que habilitavam para a docência no 1º CEB e para uma das áreas disciplinares do 2º ciclo. Um fim há muito desejado por largos sectores da docência!

Estas diferenças que consegui identificar continuavam a não corresponder ao que ouvira, nem ao que lera!! … será ingenuidade da minha parte?... haverá quem queira ler neste documento o que ele não diz?

Na componente da modulação da formação consagra-se a sua flexibilidade e reconversão, princípios que me parecem consensuais e pacíficos do ponto de vista dos alunos do ensino superior, abrindo a possibilidade da não existência, à partida, de uma intencionalidade na oferta, por parte das instituições de ensino superior, ou na procura, por parte dos alunos – os alunos poderão começar por frequentar determinadas disciplinas da área da física, por exemplo, e posteriormente virem a descobrir que querem ser professores, seleccionando então as disciplinas necessárias para esse objectivo. Pode acontecer também exactamente ao contrário. Procura-se minimizar o drama dos pedidos de equivalência aquando das mudanças de cursos no ensino superior entre diferentes instituições (para já não falar de quando isso acontece na mesma instituição).
Salvaguarda-se neste documento, no entanto, o caso da Educação de Infância e o dos professores do 1º ciclo do ensino básico, pelo que poderá haver escolas superiores que disponham dessa oferta devidamente estruturada à partida, ou não. Tudo dependerá das características a definir pelo ME em termos das habilitações académicas e profissionais para a docência a serem adquiridas através das três condições anteriormente referidas.

Continuei a não encontrar aqui a distinção entre as exigências dos graus académicos e os anos de frequência no ensino superior acima referidos na comunicação social …
Voltei a questionar-me: Seria a linguagem do documento / proposta muito hermética? Só compreensível por quem pertence ou está próximo do meio? … ou haverá algo escrito nas entrelinhas que eu não consegui descortinar?

6. Prosseguindo com a minha segunda leitura…

Diz-se também que aos dois subsistemas de ensino superior, universidade e politécnicos, é reconhecida a possibilidade de realizarem a formação de educadores de infância e professores para todos os ciclos de ensino básico e para o ensino secundário.

Não encontrei escrito em lado nenhum deste documento afirmações que digam que não poderá haver educadores de infância com o grau de mestre (o correspondente a 5 anos de frequência e aprovação no ensino superior), que não possa haver professores do ensino secundário apenas com o grau de licenciado (3 ano de frequência e aprovação no ensino superior).

E voltei a interrogar-me: a quem interessa lançar esta confusão? … a que visão tão reducionista e hierarquizada socialmente dos níveis de ensino não superior, e consequentemente dos seus agentes, corresponde esta interpretação do documento? … Quem tem medo dos saberes holísticos e integradores que caracterizam os educadores de infância e os professores do 1º CEB? … Será apenas mais uma forma de valorizar os “ditos” saberes científicos (os das “ciências puras e duras”, como se ouve dizer) em detrimento dos saberes científicos das ciências sociais e humanas e das ciências da educação?

Fiquei perplexa com a leitura jornalística (será apenas uma interpretação jornalística?) feita a este documento! … voltei a questionar-me: «… mas o que terão ouvido os jornalistas para fazerem esta interpretação?...»

7. Claro que esta proposta exige um grande esforço de reorganização por parte das instituições de ensino superior, mas também tem subjacente uma outra forma de encarar e organizar os percursos de formação neste nível de ensino. A formação de professores e a sua habilitação, até agora conferida apenas através de graus académicos conferidos pelas universidades e politécnicos, passa a ser objecto de um maior controlo por parte do ME, a entidade empregadora, e deixa de estar apenas a cargo das instituições de ensino superior.

Há muitas outras questões e dúvidas que se podem colocar a esta proposta… nomeadamente o facto de ser, ou não, suficiente o grau de licenciatura (3 anos de frequência e aprovação no ensino superior) como habilitação para a docência (cumulativamente com as outras condições) …mas a mim o que mais me continua ainda a surpreender foi a interpretação que dela foi feita …

Porquê? A quem serve? …

8. Apesar de há já alguns anos a formação académica dos educadores de infância e dos professores do 1º Ciclo ser equivalente à dos outros níveis de ensino, e facultada por instituições de ensino superior, cujos docentes possuem os mesmos graus académicos que as universidade, ainda continuamos, enquanto sociedade, a desvalorizar estes profissionais e a sua actividade? … por este profissionais não serem professores de Matemática, de História, de Português ou de Ciências? … por serem sobretudo «professoras de crianças»?

Como não estive presente na apresentação desta proposta, continuo perplexa e estupefacta!!

Este documento é um documento “aberto". Tudo vai ser determinado pela regulamentação que se seguir … O que é mais significativo é o estar-se já a ler neste documento o que lá não está escrito! ... e isso é o que mais me preocupa!

Margarida Belchior
(Professora do 1ºCEB)

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