Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

2.4.06
 
"Etre et avoir" : epílogo
Lembram-se daquele excelente documentário, "Etre et avoir", que tornou famoso o seu autor, o realizador Nicolas Philibert e relançou comercialmente os documentários ? Tratava-se aí de uma escola primária rural, daquelas que parecem em vias de extinção e o documentário mostrava esse pequeno mundo pacífico onde nove ou dez alunos, de várias idades e várias classes, exercitavam a cabeça com o professor Georges Lopez, por entre trabalhos no campo e tarefas familiares.

O professor era bom ? Era mau ? Era diferente ? Era sobretudo um profissional : punha uma intencionalidade educativa em todos os seus actos e as conversas com os alunos revelavam ora a inesgotável vontade de aprender ora a sua dificuldade. Recordo-me em particular do diálogo professor-aluno em que o professor perguntando sempre "E depois ?" vai levando o seu aluno mais novo à descoberta da infinitude do número.

Ora este professor, entretanto reformado, ao ver o êxito do filme que a si tanto deveu - e êxito também comercial - deu-lhe para alimentar sonhos dourados, talvez pela primeira vez na vida, quem sabe ?! E vá de exigir em tribunal uma parte dos lucros. Segundo o Le Monde de 31 de Março, o tribunal não só não lhe deu razão como o condenou ao pagamento das custas. Os argumentos interessarão certamente ao mundo cinematográfico mas também a todos nós :

Disse o Tribunal da Relação de Paris que às aulas do prof. Lopez não podem ser atribuídos direitos de autor porque, embora "uma aula possa ser considerada, como uma conferência ou um sermão (...) une oeuvre d'esprit", ela deve responder ao critério da originalidade. Ora, segundo o tribunal, não haveria aqui "método pedagógico original" nem "escolha inédita de exercícios e textos".

Por outro lado, tratando-se de um filme documentário, cujo objecto é filmar pessoas que não estão a representar nem seguem um argumento e sim que desempenham, perante as câmaras , as suas tarefas e funções habituais, "não faz parte dos usos prever uma remuneração para os intervenientes para preservar a autenticidade das cenas filmadas". Só a N. Philibert coube "a escolha do tema, o relato da vida quotidiana de uma escola de classe única". As aulas e os diálogos "não foram concebidos para a obra audiovisual".

O professor Lopez também não pode ser considerado como "artista intérprete" já que foi sempre filmado no exercício da sua profissão de professor primário e como sujeito de uma entrevista e não como intérprete de um papel que não fosse o seu. Ou seja, se não há ficção, não há interpretação, não há remuneração.

Claro que esta decisão foi acolhida com satisfação pelo lado do realizador, sobretudo porque 8 das 9 famílias de crianças participantes já tinham seguido o exemplo do professor e também queriam uma compensação... A "economia do sector documentário está salva" concluíu o realizador. E a justiça ? Decerto também . Os argumentos são convincentes. Mas... há aqui qualquer coisa incómoda não é ? Apesar de tudo... o filme muito deve ao professor... e às crianças...E se o professor fosse doutro nível de ensino também não lhe reconheceriam "originalidade" ? E se...?

Maria Emília Brederode Santos

Comments:
Infelizmente ainda não vi o documentário. Passou-me ao lado. Fiquei no entanto com imensa curiosidade de o ver.
Esta disputa legal, parece-me também, interessante e digna, ela em si, dum "Ser ou ter" formulado a posteriori.
Afinal que papel representavam/mostravam os actores/sujeitos do documentário: a sua vida em si, dada a conhecer aos outros e autorizada pelo professor actor/sujeito e pelas famílias, (representantes legais dos menores sujeitos/actores) ou um papel cinematográfico?
Foram enganados desde o início ou não?
 
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