Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

27.4.06
 
FORMAÇÃO DE PROFESSORES E O PROCESSO DE BOLONHA*
O QUE SE PASSA COM O 2º CICLO DO BÁSICO

Ao longo de mais de trinta anos, a experiência demonstrou que as rupturas entre ciclos são demolidoras nos percursos dos alunos. Foram-se fazendo progressos, mas o facto é que não houve capacidade política para estabelecer unidade e coerência em matéria de formação, de gestão de pessoal e de equipamentos, e da própria gestão do currículo na escola básica.

1. Diplomas diferentes para a Formação Inicial de professores?

Foram recentemente anunciadas medidas para o reconhecimento de habilitações e condições de acesso à docência que condicionarão fortemente a formação inicial de professores do 1º ciclo e dos educadores de infância. Mantendo embora o princípio do grau de licenciatura para a profissão docente em todos os níveis de escolaridade, essas condições são atravessadas por subtis diferenciações que põem em causa a coerência da formação inicial e a própria unidade da escolaridade básica. [1]

A confirmarem-se, virão a perpetuar clivagens de prestígio, enraizadas na cultura docente, e que têm sido muito nocivas na constituição de equipas de trabalho transversais, necessárias para a qualidade do ensino, no âmbito dos agrupamentos de escolas.

Levada ao limite, esta lógica conduz-nos a um curso /diploma, para a docência em cada ciclo: um para a educação Pré- Escolar, outro para o 1º ciclo (de 4 anos), outro para o 2º ciclo (de 2 anos) e sobre o qual não se têm ouvido referências, e ainda outros dois, para o 3º ciclo e para o Ensino Secundário!

Acresce a necessidade de formação para a acção com os 0-3 anos e (porque não?) para o Ensino Superior…E, já agora, será também de configurar diplomas específicos para os Ensinos Técnico-profissional e Artístico…E devo estar a esquecer alguns ramos!!...


2. O que se passa com o 2º ciclo?

De lugar onde germinaram muitas das boas mudanças no sistema educativo, nos anos 70, o 2º ciclo do Ensino Básico passou a ser um patamar “entalado” entre o 1º e o 3º ciclos.

Na sua criação, na reforma dos anos 60, o ciclo “Preparatório” (do Ensino Secundário), que a Lei de Bases de 1986 veio confirmar, tinha um sentido de sequência do Ensino Primário em regime de professor único.

À sua estrutura de áreas bidisciplinares, corresponderam a profissionalização e a formação inicial de professores que confere um diploma “duplo”, dirigido à docência no 1º ciclo e numa área do 2º ciclo. [2]

Mas, ao longo de mais de três décadas, a organização do serviço dos professores no 2º ciclo foi mantendo o ensino em disciplinas separadas e os alunos continuaram a ter de transitar de 1, para 10 professores. Esta prática agrava o contraste entre os dois ciclos, provocando uma transição muito difícil para os alunos, o que é um factor determinante de insucesso escolar.

Ora as naturais inquietações quanto ao alcance da formação inicial para o ensino em seis anos de escolaridade, têm polarizado o debate em torno das diferenças entre os ciclos, em vez de se analisarem os benefícios e as implicações da continuidade do currículo nessa faixa do sistema escolar, dos 6 aos 12 anos.


3. O currículo da escola básica e o sentido dos agrupamentos de escolas

A reorganização da rede escolar, com a criação dos agrupamentos, visou”favorecer um percurso sequencial e articulado dos alunos …” (do DL 115-A/98).

No entanto, na estrutura dos quadros de pessoal docente de cada agrupamento, mantêm-se os estratos profissionais herdados do tempo do Estado Novo, que correspondiam a diferentes níveis académicos, sem traduzirem a organização escolar adequada ao acompanhamento sequenciado dos alunos.

E, como consequência nefasta, tem-se desperdiçado, sem avaliação, a vantagem que pode ter representado a formação inicial de uma geração de jovens professores (já cerca de 10 anos de atribuição de diplomas), potencialmente capazes de lidarem com uma sequência de trabalho mais adequada às necessidades de aprendizagem dos alunos, correspondente a uma unidade curricular consistente, nesse período escolar de seis anos.

O 2º ciclo é visto, agora, como uma escola de tutela, a sede do agrupamento, e como um remate de cúpula do ciclo antecedente e, o que é pior, tem contaminado este com o conceito de que o somatório de múltiplos conteúdos especializados constitui um currículo.

Por onde passa, então, a identidade dos 5º e 6º anos?

Como tirar partido da coexistência, na mesma organização escolar, de profissionais que actuam dos 3 aos 15 anos, para delinearem percursos coerentes para os alunos?

Ao viabilizarmos, na rede escolar, processos de articulação “vertical” entre os ciclos, seria agora oportuno analisar os sentidos do trabalho do professor da classe, com apoios em áreas não abrangidas pela sua formação, e aplicar esse conceito a um ciclo mais longo do que o actual 1º ciclo de quatro anos.

Assim, o 2º ciclo, ou poderia considerar-se como um prolongamento do 1º e abrangeria 6 anos, ou poderia “repartir-se”, constituindo-se então um 1º ciclo com os primeiros 5 anos e um seguinte, abrangendo do 6º ao 9º ano.

Essa é a alternativa à compartimentação por disciplinas, já de si excessiva nos 5º e 6º anos, e que está actualmente a alastrar para a organização do 1º ciclo, subvertendo completamente o sentido do currículo integrado.

Qualquer dessas soluções não é contemplada pela Lei de Bases da Educação, que teria que redefinir a estrutura do Ensino Básico. No entanto seria do maior interesse, no momento actual, valorizar estratégias de articulação entre os ciclos, e prevenir que se acentuem as fracturas entre eles.


4. Para a continuidade do percurso escolar …que formação?

A Formação Inicial, agora a ser delineada no quadro do “processo de Bolonha”, não pode ser dissociada da lógica que se aplica à concepção do Ensino Superior, no seu conjunto

A determinação de graus diferenciados e a correspondente formatação dos planos de estudos, à partida associados aos ciclos da escolaridade a que se dirigem os diplomas, compromete um dos critérios apontados no acordo de Bolonha, que é o da flexibilidade, o qual implica uma formação de banda larga, facilitadora da permeabilidade entre percursos no ensino superior.

Essa clivagem é ainda acentuada com as diferenças na composição dos diplomas, também anunciadas entre Ensino Politécnico e o Universitário [3] .

Se tivermos também em conta as (im)previsíveis mudanças sociais, demográficas, culturais e outras, nos próximos tempos e nas décadas por vir, reconheceremos o valor desta flexibilidade. Ela facilitará o ajustamento dos profissionais, a aquisição e a renovação de competências, enfim, a movimentação no sistema.

Estas são condições que se articulam com outro princípio, o da Aprendizagem ao longo da Vida, o qual faz salientar a importância política a atribuir urgentemente à Formação Contínua, como um dispositivo permanente de valorização pessoal e profissional.

A necessidade de configurar agora os modelos da Formação Inicial evidencia a importância de avaliar e rentabilizar a experiência adquirida e os recursos existentes, de modo a evitar fórmulas que, pela sua rigidez, sejam dificilmente reversíveis ou ajustáveis a novas conjunturas sociais e culturais.



[1] Ver na página do Ministério da Educação http://www.min-edu.pt/Scripts/ASP/medidas.asp, a proposta de diploma e o esclarecimento inserido na sequência de reacções e de dúvidas provenientes de diversos sectores, segundo a qual “a licenciatura dos educadores de infância e dos professores do 1.º ciclo contempla entre 180 a 240 ECTS”, enquanto as dos outros ciclos têm, como mínimo, 240.

[2] os cursos de licenciatura para docência no 1º ciclo com Variantes para o 2º, integrando duas disciplinas, realizado desde os finais da década de 80, nas Escolas Superiores de Educação.

[3] DL nº74/2006 - Regime jurídico dos graus e diplomas do ensino superior, recentemente publicado

Maria José Martins

* Publicado no Jornal de Letras - Educação - Abril de 2006

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