Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

13.5.06
 
Mais exames? Não, obrigado.
Por alguma razão pouco clara, parece existir uma fé generalizada na bondade dos
testes e dos exames escolares, um pouco em todos os níveis. Parece acreditar-se
mais na objectividade do resultado das 'medições das aprendizagens', quando
efectuadas através de um teste escrito (e realizado durante um tempo limitado,
em condições geralmente bastante formais e sob uma fiscalização atenta) do que
numa avaliação prolongada no tempo e decorrente de um conhecimento profundo (e
necessariamente subjectivo, como todo o conhecimento) do aprendiz. Trata-se do
mito de que as aprendizagens serão avaliadas mais objectivamente através de um
exame que procure quantificar os saberes do aluno.
Mas é necessário analisar em pormenor este mito. Tradicionalmente os elementos
quantitativos são olhados como tendo uma natureza mais objectiva e mais clara do
que as apreciações qualitativas. Esta é uma questão de natureza sócio-cultural
que não podemos ignorar. Mas isto só acontece porque o mito da objectividade da
quantificação é muito forte. Veja-se o caso recente dos números do défice: o que
parece importar mais é o número em si mesmo em vez daquilo que é essencial e que
é a descrição da situação do país e um retrato dinâmico e evolutivo dessa
situação que permita perceber quais são os factores humanos que mais estão a
constituir elementos de não desenvolvimento. Ao assumir (erradamente) o rigor da
quantificação esquece-se que se trata apenas de modelos (matemáticos) que podem
ser úteis ou não para um dado fim e que podem traduzir melhor ou pior uma dada
situação.
Na educação acredita-se em geral, e sem grande questionamento, que é
absolutamente necessário fazer a comparação e a seriação dos alunos porque isso
trará algum benefício a todos. Errado, como se vê pelos resultados de inúmeras
avaliações nacionais e internacionais. Não é oferecendo aos alunos, aos
professores e aos pais uma lista de números por turma que se está a ajudar a
todos a melhorar as aprendizagens. As actividades escolares não são uma corrida
cujo objectivo é chegar em primeiro lugar. Por muito que custe, a educação não é
comparável à preparação dos atletas cuja finalidade é competir com outros para
trazer uma medalha para o seu país.
A avaliação das aprendizagens na escola continua a ser largamente vista como um
processo de legitimar uma dada classificação numérica a ser atribuída pelo
professor a cada um dos seus alunos. Esta não é obviamente a vocação da
avaliação numa escola que assuma o seu papel constitutivo no processo de
aprender. Em última análise as práticas avaliativas que visam primordialmente a
classificação quantitativa apenas contribuem para a seriação dos alunos e
consequentemente para a exclusão escolar e social de muitos deles.
Em tempos em que mais e mais se reclama, em todos os quadrantes da sociedade, a
necessidade de que a escola básica e secundária contribua de facto para a
formação de futuros cidadãos intervenientes, activos e responsáveis - capazes de
desenvolver a democracia devolvida a Portugal com o 25 de Abril - espanta
perceber que existe um recrudescer da cultura dos exames na escola nomeadamente
ao nível do discurso de alguns políticos (que não sabem de facto do que falam
quando falam de educação) mas também de muitas pessoas com responsabilidades na
educação.
Tudo indica que os alunos vão ser cada vez mais avaliados através de exames
finais nacionais. É preciso reconhecer que os sinais que são dados aos jovens
sobre os modos como são avaliados os seus conhecimentos na escola, entram em
contradição com alguns pressupostos sobre o que significa o desenvolvimento da
cidadania e da educação para a cidadania democrática. De facto, as avaliações
baseadas em provas de exame, com resultados que são reduzidos a números, apenas
estabelecem um modelo que descreve (de uma forma pobre e altamente incompleta) a
situação dos alunos, e servem objectivamente para seriar esses mesmos alunos
segundo critérios que é preciso colocar em questão. A cultura dos exames
escolares acaba por destruir a possibilidade de trabalho cooperativo e colectivo
uma vez que é um instrumento para distinguir, separar e excluir. O exame final
acaba por introduzir a lógica do "cada um trata de si" mas com a particularidade
de que não há escapatória quando cada um está a lidar com um mundo fechado e
altamente codificado como acontece em diversas disciplinas escolares. Cada aluno
acabará por ser classificado de modo "perfeito" numa escala que vai do "grupo do
quadro de honra" ao "grupo dos incapazes" com mais ou menos categorias pelo
meio. É por isso um desafio para os educadores e professores criar e implementar
outras possibilidades para avaliar o trabalho que desenvolvem com os alunos
(avaliando também assim o seu trabalho) num processo de crescimento e de
participação, em vez de promover mais e mais exames para separar, dividir,
classificar, seriar, hierarquizar. E é bom dizer claramente que não estamos
condenados a ter um sistema de avaliação baseado em exames nacionais.
A avaliação, tal como se faz em Portugal no final do ensino básico através dos
exames finais nacionais de Matemática e de Língua Portuguesa, serve diferentes
funções e podemos ver nela diferentes propósitos, sendo que um dos mais
importantes é fazer uma estratificação pública dos alunos. Mas se a educação é
governada por princípios democráticos de equidade e de justiça, qual é o
significado da estratificação e das provas de exame?
O esforço posto no desenvolvimento de provas de exame, e da sua implementação
nas escolas, desorganiza necessariamente tempos e espaços que deveriam ser
obviamente aproveitados para viver a escola e aprender. E essa desorganização
não se dá apenas enquanto os exames duram, mas igualmente nos longos meses de
esforços de preparação dos alunos para "ficarem bem nos exames".
Penso ser largamente assumido por todos que não é possível justificar a
diferença de "tratamento" dos alunos com referência à sua origem étnica, género,
religião, origem social ou outra categoria similar. Pergunto: de onde é que
emerge a ideia de que a competência, capacidade ou habilidade numa dada
disciplina pode ser uma excepção a este respeito? Os exames podem
(eventualmente) ter um papel na educação, mas os exames não precisam de estar
relacionados com a reprovação nem com a estratificação pública. O facto de num
sistema educativo existirem formas de avaliação em que haja uma possibilidade de
insucesso, e em que a estratificação pública dos alunos toma a forma de níveis
de avaliação, faz com que a relação entre a educação e a democracia esteja
irremediavelmente quebrada. Isto leva de imediato a pôr em causa, de forma
radical, a possibilidade de fazer de modo coerente 'educação para a cidadania'.
É preciso questionar o currículo escolar no que respeita às formas de avaliação
e em particular à tendência para basear essa avaliação cada vez mais em exames.
Se questionarmos radicalmente a organização curricular e os exames, somos
levados a perguntar que tipo de currículo queremos implementar - porquê este e
não outros tipos de objectivos, actividades, formas de avaliação - e isso
significa perguntar em que é que queremos que os nossos alunos se transformem
como pessoas. E naturalmente que isto está ligado ao tipo de sociedade que
queremos construir. Trata-se por isso de fazer escolhas curriculares que são
eminentemente de natureza política e ética. É preciso afastar a perspectiva de
que o conhecimento, a cultura e a organização curricular são neutros, sem
intencionalidade, assépticos, produtos acabados que existem fora de qualquer
ligação com o mundo social.

João Filipe Matos, Professor Universitário

Comments:
Extraordinária a forma como se associam os exames a uma qualquer forma de discriminação! Este tipo de raciocínio, que evita falar dos currícula e dos professores que existem na nossa praça, que desdenha das avaliações "quantitativas" e que anseia pelo "Homem Novo" da Democracia, é o caldo preferido dos especialista das ciências da Educação, dos vendedores de ilusões e dos fabricantes da bovinidade que dominam as nossa faculdades (mentais incluídas!). O desprezo em relação ao rigor e aos conhecimentos académicos e culturais, é compensado pelo ardor de "igualitarismo" que condena, perversamente, a média dos nossos alunos a desempenhos medíocres e a formas de vida miseráveis. Ficam contentes com os projectos de educação sexual, para a cidadania, para a diferença, para a ecologia, para a prevenção de acidentes e, toda uma panóplia de tralha que não serve rigorosamente para nada, que não seja alargar os horários para além dos limites desejáveis, manter e alimentar programas inúteis com professores excedentários. Porque não se exige rigor, nem conhecimento histórico, nem raciocínio lógico e crítico, nem nada que dê muito trabalho a pensar e a estudar, os nossos cidadãos, democraticamente instruídos, irão continuar a apoiar as Fátimas Felgueiras e Valentins Loureiros que povoam o imaginário da maior parte das mentes educadas na nossa querida escola de valores portugueses: Pois o Sr. Presidente da Câmara até oferece bolas de futebol e financia o pavilhão desportivo, além de que dá emprego ao meu pai e ao meu tio!

Este tipo de "inquietação" é uma estranha forma de anestesia que impede os portugueses de saírem da mediocridade e que reforça todas as condições de corrupção, moral e económica, já que o que se promove é a "inclusão" por baixo, via padrinhos, subsídios e sacos azuis.

Rui Jorge
Psicólogo educacional
 
A noção que fica é que as ideias que exponho tocam pontos sensíveis de algumas pessoas ou ameaçam de alguma maneira os seus pequenos poderes. Veja-se o exemplo do livro de Nuno Crato (uma confissão pública de ignorância sobre matérias de educação como não se via há muito tempo). Este comentário de Rui Jorge vai na mesma linha. Infelizmente não traz nada de novo à discussão e não apresenta um argumento que seja a favor das provas de exame.
Sinal dos tempos em que parece que existe um medo de pensar e de reflectir, de pôr em causa as coisas e de questionar a forma como elas sempre foram.
Felizmente há muita gente a querer avançar e mudar a escola - muitos professores, muitos educadores, muitos pais e encarregados de educação.
 
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