Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

30.9.06
 
A Convenção da Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
Ana Maria Bénard da Costa*

Nota introdutória

Porquê escolher como tema deste breve artigo a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 28 de Agosto de 2006?

Em primeiro lugar, porque a educação de crianças e jovens com deficiência deve ser encarada na perspectiva global dos direitos e da igualdade de oportunidades que é objectivo central deste documento.
Em segundo lugar, porque contém medidas de política precisas em relação ao sector da educação e da reabilitação.
Em terceiro lugar, porque a publicação deste novo documento, de âmbito mundial, nos leva a relembrar outros de teor semelhante, anteriormente publicados, e a interrogarmo-nos sobre o impacto que tais publicações produziram no passado e poderão produzir no futuro.

1. A Convenção

As Nações Unidas desenvolveram, ao longo de 25 anos, diversos instrumentos tendentes a defender os direitos das pessoas com deficiência e a promover as suas condições de vida e a sua integração na sociedade:
- Proclamaram, em 1981, o Ano Internacional do Deficiente e, em 1983, a Década Dedicada ao Programa Mundial de Acção Relativo à Pessoas Deficientes (1983-1992)
- Em 1993, publicaram as Normas Gerais sobre a Igualdade de Oportunidades para as Pessoas com Deficiência
- Em 1994, a UNESCO publicou a Declaração de Salamanca e Enquadramento da Acção na Área das Necessidades Educativas Especiais
- Em Agosto de 2006, foi concluído o texto da Convenção das Nações Unidas. sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência que aqui comentamos.

A decisão relativa à elaboração de um documento com o peso duma Convenção Mundial não foi tomada de forma pacífica, pois a ela se opuseram muitas vozes que afirmavam que os diferentes instrumentos já existentes no âmbito da ONU, relativos ao direitos humanos, eram suficientes para garantir esses mesmos direitos à população com deficiência. A oposição a estas vozes surgiu durante uma Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância, realizada em 2001 na África do Sul, em que se reconheceu que, “apesar dos diferentes esforços feitos para aumentar a cooperação e integração e para aumentar a sensibilização sobre as questões da deficiência (…) estes esforços não tinham sido suficientes para garantir uma participação plena e efectiva das pessoas com deficiência na vida económica, social, cultural e política.” Foi a partir das resoluções dessa Conferência que as Nações Unidas puseram em marcha os trabalhos que deram origem à Convenção que agora foi aprovada. Para além destes obstáculos e hesitações iniciais, acesas controvérsias dificultaram a elaboração do texto e foram precisos 5 anos de intensos debates, ao longo das 8 sessões do Comité ad Hoc responsável por esta tarefa (de 2002 a 2006) para se chegar ao texto final. O capítulo relativo à educação foi um dos que motivou maior polémica, confrontando-se, ao longo destes anos, as posições que pugnavam abertamente por uma educação inclusiva – que ficaram nele consignados – e os que defendiam a permanência de estruturas segregadas de ensino.

2. Aspectos a salientar no que respeita a educação das crianças e jovens com deficiência

A formulação dos diferentes artigos que compõe este documento permite, em cada um deles, e em relação com os vários sectores, aplicar o respectivo conteúdo às diferentes faixas etárias, incluindo as crianças e os jovens. No entanto, vamos aqui unicamente referir algumas recomendações dirigidas aos Estados membros que consideramos mais relevantes e que estão contidos no Artigo 7 – As crianças com deficiência - e no Artigo 24 – A educação -.

São elas:
a) Garantir que as crianças usufruam de todos os direito humanos expressos nesta Convenção;
b) Garantir às crianças a possibilidade de expressarem os seus pontos de vista sobre os assuntos que lhes dizem respeito;
c) Assegurar um sistema educativo inclusivo, ao nível básico e secundário, numa base idêntica às restantes crianças da comunidade em que vivem;
d) Fomentar nas crianças a auto-estima e criatividade e desenvolver a sua máxima potencialidade física e mental;
e) Proporcionar os apoios necessários no âmbito do sistema educativo regular, de modo a facilitar uma educação eficaz, nomeadamente, a aprendizagem do Braille, da mobilidade, da língua gestual (promovendo a identidade linguística da comunidade surda), das comunicações alternativas e aumentativas e favorecendo o apoio entre colegas;
f) Empregar professores com deficiência, fluentes em Braille ou língua gestual;
g) Garantir os serviços de habilitação e reabilitação necessários, a partir das fases mais precoces que for possível e de modo a fomentar a participação e inclusão na comunidade, mesmo nas áreas rurais;
h) Promover a formação inicial e contínua dos profissionais envolvidos.

3. Que impacto esperar em Portugal no sector educativo?

Podemos, em primeiro lugar, interrogarmo-nos sobre o que foi feito entre nós depois de publicados os dois últimos documentos de âmbito mundial que referimos no início: as Normas sobre a Igualdade de Oportunidades para Pessoas com Deficiência e a Declaração de Salamanca e Enquadramento da Acção na Área das Necessidades Educativas Especiais .

Os dois documentos foram editados em português mas a sua difusão foi limitada e, neste momento, só circulam fotocópias da Declaração de Salamanca porque se esgotou a 1º edição, sem que tenha sido reeditada. Os temas em causa foram abordados em numerosas Conferências e Seminários e são apresentados em alguns dos cursos de pós – graduação em Educação Especial que se ministram em vários pontos do país. Mas, para que as recomendações neles expressas - e que, especialmente no caso da Declaração de Salamanca, representavam mudanças significativas que levariam a inverter muitos dos conceitos e das práticas vigentes - se viessem a aplicar, muitos outros passos seriam necessários.

A realização de estudos sobre as implicações das medidas propostas; a elaboração de um Livro Branco sobre a problemática da Educação inclusiva; a reformulação dos cursos de formação de professores, de modo a capacitá-los a gerir a diversidade na sala de aula e na escola; a reformulação dos serviços de apoio a nível das escolas e em estruturas de segunda linha, de forma a responder a esta diversidade; a reestruturação das respostas especializadas destinadas aos alunos com deficiências graves; as medidas visando a transição para vida activa e a inserção social e laboral dos jovens após a escolaridade, são algumas das medidas que poderiam ter surgido como resposta aos desafios contidos nos documentos citados e que, contrariamente ao que aconteceu em muitos países, não tiveram lugar entre nós.

É, portanto, legítimo que temamos que, agora, no campo específico das crianças e jovens com deficiência (não esqueçamos que a perspectiva da educação inclusiva é muito mais abrangente, pois foca a resposta da escola para todos os alunos que se deparam com barreiras dos mais diferentes tipos na sua educação) as recomendações que as Nações Unidas apresentam voltem a ter um impacto igualmente limitado. Talvez se sigam as habituais Conferências e Seminários e talvez se faça alguma edição do texto em português, mas tememos que, mais uma vez, não surjam as medidas que poderiam ter alguma eficácia na mudança de que carece o nosso sistema educativo para que se verifique uma real inclusão educativa das crianças e uma plena inserção social e laboral dos jovens com deficiência, ou seja uma garantia de que são respeitados os seus direitos humanos.

No entanto, a aprovação pelas Nações Unidas deste Documento tem um valor inquestionável: as objecções que neste país ainda se colocam á educação inclusiva (algumas bem documentadas pela forma como foi planeado o último Congresso de educação especial) serão agora mais difíceis de sustentar e, por outro lado, todos os que procuram garantir a todas as crianças o direito ao acesso e participação na escolar regular – pais, professores, técnicos, pessoas com deficiência, diversas ONG, encontrarão nele uma orientação e um suporte. Num momento em que, em Portugal, se estão a desbravar corajosamente tantos novos caminhos que visam uma educação de maior qualidade, esperamos que também nesta área se iniciem os passos decisivos para a mudança que nos foi apontada em Salamanca há mais de uma década e que em Agosto passado foi novamente proclamada para todo o mundo.

*Assessora do Ministério da Educação aposentada, responsável (de 1973 a 2002) por Serviços de Educação Especial do Ministério da Educação e pelo Serviço de Inovação e Investigação do Instituto Inovação Educacional.

Publicado no Jornal de Letras - Educação nº 27 de Setembro

Comments: Enviar um comentário

<< Home