Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

15.9.06
 
Desconhecer e fugir para diante
Joaquim Azevedo*

Assim como não faz sentido dizer que o Direito é responsável pelos atrasos dos processos nos tribunais ou a Medicina pelas filas de espera ou pelo deficiente atendimento nos hospitais, também é demagogia da mais cristalina afirmar que as ciências da educação são as responsáveis pelos problemas que enfrenta o sistema educativo português.

A escola portuguesa progrediu imenso nos últimos trinta anos e são inquestionáveis os seus contributos para o desenvolvimento do país. Mas este texto não visa seguir este filão da análise, muito obnubilado. O que procuramos pensar é o facto de estarmos, hoje, diante de uma situação social em que o referido discurso demagógico engana muitos e até chega a encantar alguns “fabricadores de opinião”.

Estamos, de facto, perante uma crise real e profunda do sistema educativo. Mais, existe uma incapacidade inquietante em pensar com tempo, profundidade e persistência o que realmente subjaz a esta crise (será que alguma vez criamos hábitos de pensar deste modo a nossa sociedade?). Alguns espertos, como mera estratégia de recurso e como “fuga para a frente”, agarram-se ao mais insensato senso comum e enunciam à exaustão uns slogans elaborados apressadamente, à falta de melhor e porque a repetição de frases feitas e sem qualquer explicação é uma das conhecidas vias de endoutrinação.

A crise existe, é generalizada e, entre nós, apresenta contornos particularmente graves. Ela tem causas que se colam a um percurso histórico concreto e a opções políticas da elite dirigente do Portugal democrático. De nada vale esconder a cabeça na areia, é preciso investigar e debater esta situação sem descanso, pois é urgente agir acertadamente (como estão tão em moda os apelos ao agir, agir, agir, outro sinal de fuga para a frente!), ou seja, melhorar a escola portuguesa. O contributo das ciências da educação (a educação é uma actividade humana complexa que carece do contributo de várias ciências para ser compreendida) tem sido precioso, não só para compreender o caminho percorrido como para perceber fracassos e impasses actuais. Este contributo das ciências da educação pode ser analisado pelo menos sob três prismas: (i) elas têm-nos afirmado e reafirmado que há políticas que têm sido seguidas que só podem conduzir ao desastre; (ii) elas lembram-nos que há uma realidade social que nos condiciona e amarra e que não é possível puxar pelas folhas para fazer crescer e verdejar a alface; (iii) elas sugerem, de muitos modos, que há outras vias que se deveriam percorrer para melhorar a educação e os seus resultados.

Abramos apenas a porta de cada prisma, no curto espaço que temos disponível. Quanto ao primeiro: são inúmeros os estudos que concluem, por exemplo, que o modelo de reformas que têm sido concebidas e executadas ao longo dos últimos trintas anos tem reforçado quer a irresponsabilidade que inunda no sistema, do centro à mais distanciada periferia, quer o centralismo, a burocracia e o uniformismo, que continuam a dominar as políticas sectoriais de educação, conduzindo a conhecidos fracassos.

Quanto ao segundo: a investigação tem avaliado o atraso educacional dos portugueses adultos como um “chumbo” que nos tolhe os movimentos, em cada dia que passa, além de nos ajudar a compreender os riscos, por exemplo, quer de uma desvalorização social do ensino profissional, quer de uma hipervalorização das credenciais escolares ou da aplicação, sem mais, de um paradigma meritocrático numa sociedade em que crescem vez mais as desigualdades sociais.

Quanto ao terceiro: as sugestões têm sido imensas e estão plasmadas em inúmeros e diferentes resultados das pesquisas, desde a urgência da autonomia e da responsabilização das instituições escolares e dos seus profissionais, passando pela aplicação da diferenciação pedagógica para melhorar um sustentado sucesso escolar, até às potencialidades da aplicação do novo paradigma da aprendizagem ao longa da vida.

As explicações fáceis e cabais, que estabelecem relações causa-efeito nunca estudadas nem demonstradas, são serpentes que encantam, porque de facto urge agir e melhorar a situação (diz-se que isto ia lá era com mais exames, mais horas de permanência dos alunos e dos professores na escola, com menos intervenção das ciências da educação, com mais controlo estatal sobre tudo e todos os que operam em educação, etc.). O problema é que, entretanto, só estamos a empurrar os problemas reais e difíceis para debaixo do tapete.

Jamais os discursos fáceis, elaborados requintadamente para as palmas de plateias ansiosas e muito preocupadas, serviram o desenvolvimento social. Sempre o condenaram, um pouco mais adiante. A melhoria gradual e sustentada da educação escolar dos portugueses, nestes dias, eles próprios tão difíceis de enxergar, requer seguir vias bem mais difíceis de discernir, bem mais espinhosas na sua aplicação, envolvendo uma pluralidade de actores sociais e muito mais exigentes na sua avaliação e correcção.

Desenhada no séc. XVIII para uma minoria de eleitos, a mesma instituição escolar acolhe agora todos os cidadãos que, por isso mesmo e por outras razões que concorrem com esta, depositam nela esperanças amplamente desmedidas. No momento em que a escola atinge o seu apogeu é que revela mais flagrantemente as suas fragilidades. Foi precisamente isso que aconteceu ao longo da história com muitos outros subsistemas sociais, que desapareceram, tendo outros surgido no seu lugar. Ontem como hoje, a voz dos cínicos e demagógicos é, em certos momentos da história, a voz que mais se ouve, enquanto os problemas passam, nos afligem e subsistem.

Resta-nos, aos que acreditamos na liberdade, na construção democrática de condições de vida digna para todos e para cada pessoa, na educação como fonte privilegiada de desenvolvimento humano e de cultura, combater este cinismo e demagogia e ousar, sem medo e persistentemente, apoiar o muito de bom que já se faz e percorrer caminhos novos, com bom-senso, criatividade e sustentabilidade.



* Membro do Conselho Nacional de Educação, Director do Instituto de Educação da Universidade Católica do Porto

Publicado no Jornal de Letras - Educação

Comments:
Atendendo relevância deste texto vou deixar uma ligação no meu blogue. Obrigado.
 
Falta um “à” a anteceder a palavra relevância
 
Li o artigo à pressa, talvez por isso, ou talvez não, não percebo quem são "os cínicos e demagógicos" referidos pelo autor deste texto. Como estou a entrar em burnout, agradecia que alguém mais lúcido me ajudasse.
 
Em primeiro lugar, parabéns, Miguel, pelos comentários serem moderados. Agora o meu comentário.

Aí está a razão pela qual não acredito nessa comissão! Trata-se de mais um tentáculo do enorme polvo que envolveu a escola pública portuguesa! Enquanto o orçamento de estado para a educação servir para alimentar esse polvo gigantesco, os portugueses que sonham com um futuro melhor para os seus filhos través da escola pública podem continuar sentados, porque tal não se verificará!

Aliás, esse texto é um hino ao "eduquês" e ao políticamente correcto, faz afirmações e depois consegue afirmar o contrário...! Tem um mdeo dos exames, que até mete dó...!Típico.
 
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