Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

5.3.07
 
A Balcanização do 1º Ciclo do Ensino Básico
Sérgio Niza*

Na Europa, o ensino primário, só em Portugal perdeu o nome. Designamo-lo, desde a reforma do sistema de ensino de 1986, por 1º ciclo do ensino básico. Iniciou-se, então, uma progressiva descaracterização e perda de identidade deste ciclo de ensino. Associado à nova designação, o mais reduzido ciclo de monodocência dos sistemas de ensino europeus passou a ser coadjuvado por professores especialistas, o que rapidamente conduziu ao esquartejamento dos tempos lectivos para distribuição do trabalho com as turmas a esses outros professores.
Foram os primeiros sinais a antecipar a disciplinarização de todo o sistema de ensino e o esvaziamento da identidade deste ciclo globalizante para a iniciação formal ao mundo da escrita onde radica todo o trabalho intelectual de escolarização.
O estranho zelo demonstrado agora pela equipa ministerial ao acentuar a disciplinarização do 1º ciclo, criando até novas orientações curriculares, perverte ainda mais o sentido da reorganização curricular que se diz servir (a de 2001). É um novo ataque para destruir os continuados esforços de muitos, feitos ao longo dos últimos anos, para que se pudesse assegurar um trabalho curricular mais integrado, a fim de proporcionar mais qualidade pedagógica à iniciação das aprendizagens formais deste ciclo de escolaridade.
Entre os anos 70 e 80 produziram-se os mais interessantes currículos integrados de ciências, sobretudo nos EUA e no Reino Unido, como resposta aos desafios a que o conhecimento científico foi chamado, durante a primeira década de disputa dos blocos políticos de então, pela conquista do espaço. Foram esses padrões curriculares que serviram de suporte à produção curricular portuguesa, para as áreas de integração curricular, disciplinares e não disciplinares, numa tensão desmedida criada pelos defensores dos territórios disciplinares. Com efeito, no meio das disputas pelos tempos curriculares, a reestruturação curricular de 89-90 consagrou uma área integrada de ciências, o Estudo do Meio para o 1º ciclo e uma área curricular interdisciplinar para todo o ensino básico e secundário, como para compensar o reforço da estrutura disciplinar nos outros segmentos do sistema, através de uma área não disciplinar destinada a atravessar longitudinalmente os tempos das disciplinas: a Área-Escola. Esta proposta, entendida pelos professores das disciplinas como estranha intromissão e apropriação de tempo do ensino das suas disciplinas, veio a ser posteriormente assumido num tempo autónomo, paralelo aos tempos disciplinares, designado por Área de Projecto, na reorganização curricular de Janeiro de 2001.
Decidiu, então, o Ministério propor às escolas um currículo nacional de ensino básico, por competências, na perspectiva de capacitar os alunos para o uso dos saberes em acções que possam corresponder às funções sociais da cultura.
O reconhecimento de alguma autonomia na concepção e contextualização curricular, prevista pela necessidade de flexibilização curricular que decorre desta mesma concepção, teria de se apoiar na delegação de outros poderes logísticos e de gestão às escolas, regulamentando a autonomia legislada em 1989, o que não veio a acontecer. O currículo nacional por competências, editado em Setembro de 2001, é um documento contraditório que ultrapassa em muito as funções de um currículo de competências básicas (um core curriculum), onde os textos dedicados a cada disciplina assumem um carácter deliberadamente programático, confundindo repetidamente competências específicas com objectivos específicos, num conjunto desigual de flutuações técnicas e científico-pedagógicas.
O mais surpreendente é como no currículo nacional todo o vasto elenco disciplinar dos 2º e 3º ciclos do ensino básico antecipa em cada proposta disciplinar o que se espera, no plano dos conteúdos e dos objectivos, ou das competências disciplinares, para o 1º ciclo do ensino básico. Num texto intercalar dedicado ao Estudo do Meio apercebemo-nos de que, apesar desta outra concepção curricular, se mantêm supostamente como orientações de trabalho os programas curriculares de 1990, que assentam em outros fundamentos teóricos e curriculares. Esse texto sobre Estudo do Meio é afinal o último vestígio duma prática curricular para o estudo integrado das ciências. Sendo certo que um currículo por competências é por natureza um currículo orientado para a integração disciplinar através de processos pedagógicos interdisciplinares ou transdisciplinares, mobilizados em estudos temáticos, em resolução de problemas ou em trabalho por projectos de pesquisa, não se compreende que este currículo de 2001 tivesse acentuado ainda mais e, contraditoriamente, uma estrutura disciplinar de organização do conhecimento, comprometendo gravemente a difícil apropriação de uma cultura escolar orientada para as competências sociais e culturais de uso na sociedade.
A partir de 2005, e preparando o ano escolar em curso, foram-se acumulando as orientações de licearização do 1º ciclo do ensino básico, quer por parte do governo, quer pela lógica de uniformização de procedimentos administrativos, na gestão dos agrupamentos de escolas, cada vez mais indiferentes à dimensão pedagógica do trabalho nessas escolas.
São exemplos eloquentes das políticas educativas, por um lado a determinação de que metade dos créditos obtidos na formação contínua frequentada por cada professor, a serem tidos em conta para efeitos de progressão na carreira deve ser realizada obrigatoriamente, no âmbito de acções que “relevem directamente para a docência dos conteúdos curriculares de carácter disciplinar, em sala de aula”. Futuramente, porém, por efeito da aplicação do novo estatuto da carreira docente, serão consideradas para a avaliação bienal de desempenho e para progressão na carreira, prioritariamente (ou apenas) as acções de formação contínua que “incidam sobre conteúdos de natureza científico-didáctica com estreita ligação à matéria curricular” que cada professor lecciona e as relacionadas com as necessidades explícitas da sua escola.
Por outro lado, o despacho sobre as orientações para a gestão curricular no 1º ciclo do ensino básico determina tempos mínimos de leccionação por disciplina e por áreas, o que induziu as direcções dos agrupamentos de escolas a proporem aos professores o preenchimento das respectivas fichas de distribuição dos horários de docência das disciplinas, como se se tratasse de uma prática liceal corrente.
Tal obstinação disciplinar conduziu, por exemplo, o Secretário de Estado, certamente por distracção, a determinar que à Língua Portuguesa se dediquem oito horas lectivas de trabalho semanal, incluindo uma hora diária para leitura. Feitas as contas, para além das cinco horas semanais de leitura obrigatória, restarão apenas três horas para, em toda a semana, o professor realizar com os alunos o muito trabalho que envolve todo o processo de iniciação formal ao uso escrito da língua com as crianças dos cinco aos sete anos que frequentam os primeiros anos de escolaridade. Trata-se de uma determinação desinformada, de graves consequências, que desautoriza o poder político.
Com efeito, quando o caminho das políticas educativas, no domínio do currículo e da formação de professores (como é o caso também dos novos padrões de formação estipulados para a reforma dos cursos de formação inicial de professores), passa a convergir com as opções veiculadas por ideólogos neo-conservadores que exibem com alarde as suas crenças educativas nos meios de comunicação, adensa-se mais a inquietação de muitos profissionais de educação, especialmente os da educação pré-escolar e do 1º ciclo do ensino básico, pela balcanização disciplinar que se agiganta, com todas as consequências culturais e políticas que revela.

*Professor do Instituto Superior de Psicologia Aplicada


Publicado no Jornal de Letras - Educação

Comments:
Bons dias,
A Lucidez do Sérgio Niza.
Há um elemento que gostaria de destacar de entre as que condicionam o 1ºciclo:
- a formação inicial de boa parte dos docentes do 1º e 2º faz-se em conjunto;
- para entrar nos quadros do 2º ciclo, os docentes que já são dos quadros têm prioridade.

Explicando: um colega que sempre trabalho como professor do 2ºciclo, TEM QUE passar pelo primeiro (onde nunca trabalhou, onde não quer trabalhar e onde não irá trabalhar no futuro) para poder aceder ao quadro do 2º.

Temos, assim, docentes de ed. fisica, evt, música...etc... a leccionar no 1º ciclo...

Parece um detalhe... mas não é!
JP
 
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