Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

6.3.07
 
A Massificação Educativa no 1º ciclo do Ensino Básico
Inácia Santana*

Assistimos actualmente a um conjunto de acções por parte dos Conselhos Executivos (CE) de alguns Agrupamentos de Escolas os quais, de acordo com a sua interpretação dos normativos, assim vão provocando no 1º Ciclo do Ensino Básico (1º CEB) alterações de funcionamento que põem em causa a especificidade e a identidade deste nível de ensino.
Trata-se de uma tentativa de uniformização de procedimentos no interior dos agrupamentos, que se traduz na burocratização, e consequente subversão, das características pedagógicas fundamentais deste ciclo de ensino, como sejam a organização curricular e a modalidade de avaliação privilegiada.
Tendo em conta que os agrupamentos são geridos pelas escolas do 2º Ciclo, a cultura disciplinarizante vai-se progressivamente sobrepondo a uma abordagem que se pretende globalizante, tendo em conta a faixa etária dos alunos do 1º CEB.
Efectivamente, um dos Princípios orientadores da acção pedagógica, inscritos na Organização Curricular e Programas do 1º Ciclo do Ensino Básico, do Ministério da Educação, preconiza que “o desenvolvimento da acção escolar ao longo das idades abrangidas constitua uma oportunidade para que os alunos realizem experiências de aprendizagem activas, significativas, diversificadas, integradas e socializadoras que garantam efectivamente o direito ao sucesso escolar de cada aluno.”
A operacionalização deste princípio, tal como o mesmo normativo determina, faz-se através da realização de conjuntos de actividades de aprendizagem ou experiências educativas, que abordem conceitos ou temas aglutinadores, as quais permitem, pela sua vivência, a construção de aprendizagens pelas crianças, em diversos domínios disciplinares. Cabe ao professor organizar actividades suficientemente ricas e estimulantes, que articulem, de forma integrada, os saberes das diversas áreas curriculares, bem como ir ajudando os alunos a tomarem consciência dos conteúdos abordados e à sua análise progressiva, até ao seu completo domínio pelas crianças. Esta abordagem globalizante é facilitada pelo exercício da monodocência que caracteriza o 1º CEB, sendo esta a sua principal razão de ser.
No entanto, um Despacho recente (nº 19575, de 25 /9/2006) do Ministério da Educação, onde se estipulam os tempos semanais mínimos para cada disciplina no 1º CEB, foi o pretexto para muitos agrupamentos exigirem um horário lectivo por disciplinas e obrigarem os professores do 1º CEB à utilização do livro de ponto utilizado no 2º e no 3º Ciclos, onde se registam, hora a hora, os conteúdos disciplinares abordados. Podendo parecer apenas uma medida formal, ela implica alterações profundas de modos de organização pedagógica, se os professores quiserem agir em conformidade com as hierarquias. Para o não fazerem, têm de apresentar uma argumentação bastante fundamentada e de resistir a pressões tremendas, às quais, muitas vezes, pela cultura de submissão e de conformismo que ainda domina entre os professores do 1º CEB, facilmente cedem.
O mesmo acontece relativamente às questões da avaliação. Coerentemente com os princípios atrás enunciados, o Despacho Normativo nº 30/2001 determina que “A avaliação formativa é a principal modalidade de avaliação do Ensino Básico” e que “No 1º Ciclo, a informação resultante da avaliação sumativa expressa-se de forma descritiva em todas as áreas curriculares.” Também este modo de avaliação é facilitado nos regimes de monodocência, quando se tem apenas uma turma de alunos e onde, por isso mesmo, os podemos conhecer melhor. No entanto, o conhecimento das competências que cada criança manifesta não se recolhe através de fichas de avaliação nem o modo descritivo é compatível com uma classificação quantitativa. Uma avaliação formativa exige um conjunto de instrumentos de registo que retratem o nível de produção e tipo de participação de cada criança no contexto das múltiplas interacções existentes na sala de aula, ao longo da semana. Como tal, estes instrumentos têm de ser construídos pelo professor, com os seus alunos, de modo a que se avalie o que se realiza e que os alunos vão tomando consciência dos seus percursos e das suas necessidades de trabalho. Só nessa altura é que se pode dizer que a avaliação é verdadeiramente formativa e só pela análise desses registos sistemáticos e contínuos se pode fazer a descrição de um percurso, de forma rigorosa.
No entanto, mais uma vez, assistimos à imposição de grelhas de avaliação quantitativas, à uniformização de fichas de avaliação iguais para os mesmos anos de escolaridade dentro do mesmo agrupamento, à imposição de classificação sob a forma de percentagens…
Não há dúvida de que, por detrás de todas estas medidas, para além de um enorme desconhecimento do 1º Ciclo e dos fundamentos em que se sustenta a sua organização curricular, está também uma confusão conceptual generalizada entre classificação e avaliação, entre critérios de avaliação e percentagens, entre identidade de escola e massificação uniformizadora. Urge, portanto, uma reflexão profunda sobre as consequências destas medidas para 1º CEB e sobre o empobrecimento da qualidade educativa a que conduzem.

_______________________________
*Professora do 1º Ciclo do Ensino Básico

Comments:
Excelente reflexão!
Passou para escrito aquilo que tantas vezes se diz, em voz baixa, nos corredores das escolas (não vão a Ministra ou o Presidente do C.Exec. ouvir!...).
Realmente, esta "massificação" - ou será "descaracterização"? ou "massacre"? - do 1.ºCiclo tende a generalizar-se e a ser pacificamente aceite, uma vez que se trata da implementação fundamentalista de despachos e decretos ministeriais.
O verdadeiro problema, além da profunda ignorância de alguns colegas perante as particularidades do 1.ºCiclo, é a arrogância possante que vem de cima, de quem nunca passou pelo Ensino Básico - excepto quando era aluna, no tempo em que repetir, papaguear e consentir eram as únicas formas de expressão.
Haja coragem para fazer diferente! E haja sensatez para interpretar o menos tragicamente possível os regulamentos que, só por si, já revelam o abismal desconhecimento daquilo que é ensinar e aprender, hoje.
 
De facto, este artigo, reflecte a pura realidade do 1ºciclo em Portugal. eu diria mesmo, a total submissão das características do 1º Ciclo do Ensino Básico ao poderio Absoluto e Imperialista dos Conselhos Executivos/Directores/2º Ciclo que por falta de humildade não se informam, sim porque é natural que desconheçam o funcionamento do 1º ciclo, não se informam, dizia eu, de como funciona realmente o todo o trabalho respeitante à educação inicial de crianças com apenas 6,7,8,9, anos de idade. Pergunto: - Como é possível travar este abuso e desrespeito pelo trabalho de quem prepara as crianças e das crianças, que ingressarão no seu IMPÉRIOSO 2ºCiclo?.
 
Não poderia ser dito de outra maneira!´
A sua reflexão diz tudo!
Esta descaracterização do 1º ciclo é consequência de unma falha do nosso sistema educativo e de certeza vai trazer graves consequências no futuro dos nossos alunos, vão passar a ser o aluno nº... em vez do " Joãozinho ou da Ana ". As suas avaliações são percentagens para os governos acenarem de bandeira, enquanto so pais ficam sem saber o que é que o seu filho aprende na escola. Pura e simplesmente ficam abandonados cada vez mais cedo. Infelizmente stamos a assistir passivamente ao fim da monodocência no 1º ciclo, Antes de se tomarem estas decisões seria bom reflectir e analisar onde é que existe maior insucesso escola, será que é no 1º ciclo?
Será que o 2º ciclo não deveria seguir o nosso exemplo?
De facto o abandono escola começa logo no 2º ciclo, por alguma razão deve ser.
Temo pelo futuro do sistema poi tenho um filho não vejo apenas o meu lado profisssional.
Gostei des blog espero vir aqui mais vezes.
 
Enviar um comentário

<< Home