Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

12.4.07
 
Monodocência no 2º Ciclo?
O que deve orientar o debate

Manuel Rangel*

A mudança ou reforma profunda de um sistema, qualquer que ele seja, implica necessariamente quebras e rupturas, não só com os quadros mentais vigentes como com muitos dos aspectos organizativos e papéis dos intervenientes.
Dizemos com frequência que tudo está mal, que é preciso alterar tudo, que era preciso alguém que tivesse a coragem de mexer nas coisas “de alto a baixo”! Reclamamos grandes reformas… porque está tudo mal! No entanto, quando alguém se atreve a mexer, de facto e mais a sério, nas coisas, imediatamente reagimos conservadoramente, defendendo o que existe, procurando manter tudo como está. Sobretudo, se nos sentimos implicados pessoalmente nesse processo, se isso vai mexer connosco ou com aqueles que nos estão mais próximos (por exemplo, o nosso grupo profissional).
Tal como noutros sectores, na Educação, estes processos são frequentes. O caso agora em discussão, das possíveis alterações curriculares para o 2º CEB, é bastante evidente desse ponto de vista.
Há muitos anos que, de um modo generalizado, se põe em causa e questiona este ciclo na sua essência. As questões levantadas com mais frequência prendem-se, especialmente, com:
(i) a mudança excessivamente abrupta que representa para os alunos a passagem de um regime de professor único (por vezes até de um único professor durante 4 anos) e de um currículo, senão integrado, de carácter mais global, para um regime de 7, 8, 9 professores e excessivamente compartimentado e pulverizado em termos disciplinares;
(ii) o facto de ser um ciclo de apenas 2 anos, por vezes até realizado em escolas próprias, obrigando à adaptação dos alunos a um novo esquema por um período tão curto;
(iii) e, em especial, o facto de ser um segmento da escolaridade com uma identidade mal definida, ou seja, com uma lógica original ambígua: um ciclo que manteve sempre mais a lógica de “ciclo preparatório” do ensino secundário, do que de prolongamento desejável da escolaridade básica inicial; um sector que parece continuar a organizar-se, assim, mais numa lógica regressiva, do que na lógica de “sequencialidade progressiva” que pareceria desejável e a que se refere a Lei de Bases.
Trata-se de um ciclo que parece ter ficado, de algum modo, “encravado” no sistema, mais subordinado à inércia, a questões organizativas e logísticas e a interesses e imperativos corporativos, do que a uma racionalidade no percurso escolar dos alunos. E isto, porque não parece haver nenhuma razão específica, nem psicológica nem pedagógica, para que um corte ou salto tão abrupto ocorra na escolaridade dos alunos.
Com efeito, se nos distanciarmos um pouco da tradição pura e simples, das questões organizativas e logísticas deste ciclo e das conveniências profissionais dos docentes, e nos centrarmos apenas no percurso dos alunos, podemos considerar que, numa lógica de extensão e progressão do 1º Ciclo, a passagem para o 2º Ciclo traga alguma especialização do ponto vista das matérias/disciplinas que compõem o currículo, mas nada parece justificar o salto que hoje se verifica.
Desde há vários anos, aliás, que esse problema se coloca em Portugal. Em todas as reformas o ponto de partida tem sido sempre o de reduzir o número de disciplinas do 2º Ciclo e criar uma sequencialidade mais lógica entre as duas primeiras etapas de escolaridade. A LBSE em vigor, de 1986, refere que “no 1º ciclo, o ensino é globalizante, da responsabilidade de um professor único, que pode ser coadjuvado em áreas especializadas; no 2º ciclo, o ensino organiza-se por áreas interdisciplinares de formação básica e desenvolve-se predominantemente em regime de professor por área; no 3º ciclo, o ensino organiza-se segundo um plano curricular unificado (…) e desenvolve-se em regime de um professor por disciplina ou grupo de disciplinas.” Refere ainda a LBSE que “a articulação entre os ciclos obedece a uma sequencialidade progressiva, conferindo a cada ciclo a função de completar, aprofundar e alargar o ciclo anterior, numa perspectiva de unidade global do ensino básico.”
No entanto, se esse tem sido o ponto de partida, das discussões públicas e negociações que se seguem, acabam por resultar recuos significativos, permanecendo tudo, no geral, na irracionalidade em que se encontrava.
Naturalmente que em qualquer mudança, não se podem ignorar as condições pré-existentes, nem os recursos disponíveis. E, no caso, é evidente que os professores são uma peça fundamental a ter em conta em qualquer alteração que se pretenda levar a cabo – facto que, convenhamos, nem sempre tem sido considerado ultimamente. No entanto, também com frequência se mascaram interesses pessoais (profissionais), com argumentos de fundamento, no mínimo, duvidoso: a redução do número de disciplinas ou professores representaria um abaixamento ainda maior do nível de ensino, reforçaria o facilitismo reinante, significaria uma ainda maior infantilização do currículo.
Quem nos garante, contudo, que não é a excessiva pulverização e especialização do currículo a principal causa desses mesmos problemas? Quem pode afirmar, com segurança, que um currículo mais integrado é mais infantilizante ou conduz a um maior facilitismo.
Bastará, aliás, ver o que se passa na maior parte dos países da Europa.
Em artigo recente, no portal Educare, assinado por Joana Santos, analisa-se a organização do ensino básico/elementar em 5 países europeus: Espanha, França, Alemanha, Inglaterra e Finlândia, focando-se, especialmente em dois aspectos: o regime de docência e o elenco disciplinar, nessas etapas. Conclui-se daí que, nos países analisados, os 5 ou 6 primeiros anos de escolaridade – 6 na maioria – o currículo tem carácter integrado e o regime vigente é o de professor único, generalista (podendo ser “coadjuvado” em algumas matérias). Na maior parte dos casos existe até um único ciclo cobrindo total ou parcialmente essa etapa.
E não consta que a dita infantilização ou baixo nível caracterizem generalizadamente esses países.
Sensível aos argumentos da preparação e qualidade dos professores e ao seu consequente reflexo sobre a qualidade das aprendizagens dos alunos, creio que se poderá até chegar a alguma solução, nem que seja transitória, de compromisso. Temos, aliás, em Portugal, experiências que poderão dar um contributo para repensar a situação. Será o caso, por exemplo, da Telescola (EBM), com 2 professores: um professor para as chamadas áreas de “ciências” e outro para a de “letras” (assumindo, por exemplo, um deles a direcção/tutoria da turma), podendo ainda ser coadjuvado em áreas específicas (educação física; música; língua estrangeira, quando não coberta pelo professor de “letras”, por exemplo). Mas outras hipóteses poderão ser consideradas.
Creio que uma discussão ampla (não quer dizer necessariamente longa) sobre este assunto é absolutamente necessária e que duas premissas a devem guiar:
- em primeiro lugar, que a situação deste 2º ciclo não pode deixar de ser revista e deverá sê-lo com a maior urgência, porque já demasiado adiada;
- segundo, que essa revisão resulte de um debate alargado, feito de forma séria e racional e em que não se deixem cristalizar posições – ou seja, de um lado aqueles que dizem que tudo de faz apenas por razões economicistas e para poupar; do outro aqueles que parece defenderem e tomarem medidas sempre para “castigar”, no pressuposto de que do outro lado todos querem apenas defender os seus interesses pessoais e fugir às suas obrigações e responsabilidades.
O critério prevalecente deve ser, aqui e sempre, o do percurso escolar dos alunos e o da efectiva qualidade das aprendizagens.

*Professor e director da escola “Tangerina”

Publicado no Jornal de Letras - Educação - Março 2007

Comments:
No caso da França a monodocência só se verifica no 1º ciclo! Pelo o que li, há uma manipulação dos dados, que convém a quem escreve! Pois em França o 1º ciclo tem 5 anos em vez dos 4 do nosso 1º ciclo. Por isso esclareça bem, que no caso da França (e talvez outro), o 2º ciclo impera a pluridocência! Sejam correctos
 
Este artigo está muito bem argumentado por quem escreve mas importa contudo saber de forma se processam as transições feitas pelos nossos alunos. Será mais fácil reduzir que aumentar. Daí que a monodocência no segundo ciclo seja a cura de todas as dores. Mas porque não o contrário? Porque não fazer o caminho inverso? Tal como a LBSE preconiza formar o cidadão em toda a sua plenitude com pode pressupor uma progressiva diversidade de professores que se completa do segundo ciclo. Fica a dúvida: Até que pondo um só docente consegue garantir o ensino da expressão artística, corporal e ao mesmo tempo leccionar Inglês e Língua Portuguesa? Interessante ver o ensino por esta perspectiva também. Por vezes mais que viver para ver andar os outros é arriscar na diferença e inovar.
 
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