Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

24.5.07
 
Sucesso Educativo, Autoridade Pedagógica e Formação de Equipas
Ana Maria Bettencourt*

Apesar de termos um ensino básico de nove anos (criado pela Lei de Bases do Sistema Educativo em 1986) que deveria promover uma Educação para Todos, as escolas básicas portuguesas continuam a deixar muitos alunos pelo caminho ou a prepará-los mal para “sobreviverem” ao ensino secundário ou a percursos exigentes de formação profissional.

Diz-se que o principal problema reside no facto de os alunos trabalharem pouco. Estou de acordo. Não concordo porém quando a seguir se diz que o problema e a sua solução estão inteiramente do lado dos alunos e das famílias.

Se acompanharmos o dia-a-dia de alguns alunos de escolas situadas em meios desfavorecidos, vemos que grande parte deles não têm condições para estudar depois do tempo de escola, ou porque não têm sossego e um espaço para tal, ou porque não aprenderam a estudar e a organizar-se, ou ainda pelo facto de em casa não terem quem os ajude e os pais não terem meios ou não quererem pagar explicações, tão absurdas quanto ruinosas para o bolso de muitas famílias portuguesas.

Mesmo os alunos com melhores condições sócio-económicas e culturais encontram cada vez mais elementos perturbadores para que possam trabalhar com calma e persistência em casa. Basta referir as solicitações trazidas hoje pela televisão ou pela Internet, com uma informação que pode ao mesmo tempo ser preciosa, mas extremamente perturbadora pelos seus conteúdos, mas também pela sua dimensão.

Alguns responsáveis por escolas têm-me apontado como um problema muito grave o facto de a escola continuar a agir, em geral, como se a responsabilidade pelo insucesso estivesse toda “do outro lado”, ou seja, do lado dos alunos e das famílias.

Vemos, por exemplo, percentagens muito elevadas de insucesso, por exemplo no 5º ou no 7º ano de escolaridade em disciplinas que têm início nesse ano, serem muitas vezes justificados por razões como”falta de pré-requisitos”, ou porque “os aluno não sabem estudar”. Este fatalismo vai contribuindo para que estas situações se arrastem e acumulem, mesmo que os professores dessas disciplinas tenham boa vontade para as resolver.

Ora a partir da caracterização das turmas e dificuldades dos alunos, seria necessário organizar desde o início das aulas, estratégias eficazes de remediação a desenvolver por todo o conselho de turma. Caso contrário estamos a responsabilizar esses alunos e as suas famílias por um défice que não têm muitas vezes capacidade para ultrapassar.

Felizmente todos conhecemos muitas situações em que a actuação atempada dos conselhos de turma e dos directores de turma contribuíram para que os alunos ultrapassassem situações graves de insucesso. Mas os níveis de insucesso e abandono obrigam-nos a actuar com maior eficácia.

Mais trabalho dos alunos e mais pedagogia: uma reconversão necessária

Estou convencida de que um dos problemas mais graves da nossa escola reside na sua incapacidade de se reorganizar para enquadrar de forma exigente os alunos, para que sejam capazes de trabalhar mais e melhor. Estou convencida de que a maioria dos professores trabalha muito e de que a maioria dos alunos não trabalha o suficiente.

A reconversão obriga a repensar os métodos de ensino. Um dos problemas graves nas nossas escolas é a existência de professores que teriam sido óptimos há umas décadas, porque conhecem muito bem a matéria que ensinam, mas que hoje se confrontam com uma inadaptação dos seus métodos. Saber bem a matéria que se ensina continua a ser a condição prioritária para ser um bom professor. Mas há outras condições indispensáveis que exigem uma formação pedagógica sólida. Ao contrário do que se afirma muitas vezes, o mal da nossa escola é ter pedagogia a menos, não é ter pedagogia a mais.

É preciso que os professores sejam capazes de observar o que se passa com os seus alunos, de compreender porque aprendem ou não aprendem, sejam capazes de organizar contextos de aprendizagem e de trabalho eficazes.

Um dos problemas é as aulas serem dadas na sua maioria sobre a forma de um actividade de transmissão de conhecimentos que se comunicam a uma massa de alunos supostamente homogénea. É fundamental que as aprendizagens se processem cada vez mais a partir de actividades diferenciadas, responsabilizantes, em que seja possível estabelecer com cada aluno metas de um trabalho pessoal, exigente, mas possível e motivador. É necessário desenvolver mais o trabalho experimental, o trabalho de projecto, a capacidade de usufruir da informação disponível, aprendendo a trabalhá-la de uma forma rigorosa, com capacidade crítica e respeito pelas fontes. O desenvolvimento da autonomia e do rigor passa, a meu ver, por este tipo de trabalho.

A organização de aprendizagens eficazes nos contextos actuais é de grande complexidade e requer competências novas ao nível da compreensão e da acção, muitas vezes em situações de urgência, como afirma Perrenoud.

Um dos dramas é que face a esta necessária reconversão muitos professores sentem que são eles próprios que estão em causa e não uma escola que, na sua globalidade, não se adaptou às exigências actuais. Por isso os projectos de equipa em que os professores da turma estão envolvidos podem ser contextos favoráveis à transformação das práticas.

Acredito que a criação de equipas educativas, com projectos que respondam às necessidades de apoio dos alunos, constitui um meio de co-responsabilização da escola pelas aprendizagens dos alunos.

Autoridade democrática do director de turma

Um dos problemas dos conselhos de turma (conjunto dos professores de uma turma), tal como existem no 2º e 3º ciclos do ensino básico, é o défice de autoridade pedagógica e capacidade de gestão dos seus projectos, em parte motivado pelo entendimento que se foi criando sobre as funções do seu coordenador, o director de turma. Conheço excelentes directores de turma que se consideram maus líderes porque não conseguem gerir o projecto da turma, de modo a que todos os professores o cumpram e os alunos aprendam mais. O problema não está nos directores de turma mas no entendimento que se faz da função e nas condições de trabalho. Os directores de turma têm de ter autoridade para coordenar um projecto pedagógico que foi definido por todos os professores da turma. Quantas vezes o conselho de turma define planos de acompanhamento de uma parte dos seus alunos que não são cumpridos por falta de tempo para trabalho conjunto e de capacidade do director de turma para gerir o projecto.

É tempo de ultrapassar tabus que existem em torno das questões de autoridade no exercício de funções de gestão intermédia nas escolas. É claro que se deve respeito pela individualidade e autonomia pedagógica dos professores, mas essas têm de ser compatíveis com a concretização dos projectos, sobretudo quando estes visam melhorar as aprendizagens e os resultados e prevenir situações que prejudicam gravemente o percurso de muitos alunos. As repetências não podem continuar a ser a única resposta para o insucesso. Tem de haver outras que prejudiquem menos os alunos, o país e os próprios professores.

O enquadramento dos alunos, que as equipas educativas podem realizar através do trabalho de cada professor nas suas disciplinas e também de um trabalho transversal, designadamente em áreas como o Estudo Acompanhado, o Trabalho de Projecto ou a Formação Cívica, pode ser decisivo. Mas não é um trabalho fácil.

Reabilitar a formação contínua

A formação contínua de professores na qual muito se investiu é fonte de descrença para muitos. E, no entanto, é decisiva, na educação como nos demais sectores da nossa sociedade, para a mudança sustentada. Sem prejuízo de continuarem a existir formações dirigidas aos professores individualmente, uma parte significativa da formação contínua deveria assumir a forma de acompanhamento de equipas centradas sobre a melhoria das aprendizagens e sobre o trabalho em torno de metas, visando a melhoraria dos resultados escolares.

É essencial que o acompanhamento das equipas se organize no contexto de trabalho e em cooperação entre os responsáveis das escolas, os professores e os formadores. Estas formações podem ser também contextos de produção de conhecimentos sobre a situação das escolas e as práticas educativas. Assim concebidas, estas formações podem contribuir para um melhor conhecimento das situações e para a auto-regulação.

É importante desenvolver a ideia de formação associada a mudança em equipa. Não se dirigindo a indivíduos de forma isolada, mas sim a equipas de professores e visando a transformação das práticas. As acções dirigidas a equipas pedagógicas geram um ambiente de maior segurança para que os docentes que as integram possam iniciar mudanças nas suas práticas e interrogar os resultados obtidos pelos alunos, sem que a sua capacidade profissional se veja directamente questionada.

Em investigações em curso temos vindo a verificar que o trabalho em equipa, ou em torno do projecto de turma, não é uma actividade motivadora para a maioria dos professores, que continua mais mobilizada para o trabalho solitário com os seus alunos. No entanto, tenho tido a oportunidade de verificar pessoalmente, em projectos em que trabalho, designadamente na EB 2,3 de Vialonga que, quando são criadas condições para o funcionamento de equipas educativas, com um projecto de melhoria das aprendizagens dos seus alunos e com um tempo regular para reflectirem sobre o seu trabalho e sobre a resolução dos problemas que vão surgindo, é possível recuperar alguns insucessos e mobilizar os professores.

Mas para que tal aconteça o envolvimento da direcção das escolas é decisivo!

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* Professora da Escola Superior de Educação de Setúbal e Conselheira do Conselho Nacional de Educação


Publicado no Jornal de Letras - Educação Maio 2007

Comments:
A questão do Ensino em Portugal prende-se com o facto de ser um sistema educativo onde quem manda são os tecnocratas, e não os Professores. E qualquer pessoa que de todo não conhece a "casa" dar-se ao desplante de escrever uns artigos sobre o que desconhece. O mais estranho é que ninguém reconhece o óbvio : A Maior Estrada de Liberdade que Abril traçou é a do Ensino. E essa não se deve aos tecnocratas do sistema que agora estão no seu auge (com esta mulher sinistra),nem aos discursos de uma meia dúzia de personagens que escrevem sobre o que não conhecem ou de "doutores do superior", mas a um punhado de professores. São os professores que conhecem Portugal, não sabe!?
 
Concordo com a necessidade de funcionamento das quipes de professores da turma. Mas é muito difícil esse trabalho. Dantes era por falta de tempo dos professores mas agora que têm que estar tantas horas na escola - e muitas vezes sem nada para fazer - devia ser mais fácil. Portanto tem que haver ao nível da direcção sensibilização para a questão e organizar a escola de modo a facilitar esses encontros.
 
Estou inteiramente de acordo com as reflexões da Drª Ana Maria...Melhor precisando, com as inquietações...
Na verdade, sinto na pele esta problemática! Sou Directora de Turma e sei muito bem como é gerido o currículo pela maior parte dos colegas! Sei quando custa dizer a um colega que é preciso mudar as práticas pedagógicas, falo em situações de aprendizagem motivantes, articuladas, em torno da pessoa do aluno. O currículo não pode ser entendido como "um tesouro" guardado numa gaveta, ou como um "jardim secreto" (Roldão)onde só o professor mexe. O currículo tem de ser algo aberto ao mundo, à pessoa na sua diversidade, na sua pessoalidade... Tenho 27 anos de serviço e sinto que a pedagogia em Portugal morreu.Quando falo em gestão curricular, parece que falo de algo que "não tenho tempo de fazer mais fichas", "não vou conseguir dar o programa"...Os professores têm medo dessa coisa dos projectos, não entendem que cada aluno tem o seu estilo próprio, que a matriz da escola tem de mudar, sob pena de nos aniquilarmos. Ensinar a todos e a cada um em particular não é consentâneo com um currículo "uniforme, de tamanho único". Os professores ainda não perceberam muito bem o que é essa coisa de gerir o currículo, nem tão pouco o que é o currículo!
 
Olá any
Que bom navegar na net e encontrar textos que revelam uma grande coerência.
Tenho saudades dos encontros de educação onde muitos militantes da Educação pretendiam ajudar a criar e a concretizar oportunidades educativas e cívicas para as crianças e jovens deste País.
E,não entendo o actual alheamento de muitos cidadãos activos ligados à investigação,formação e à política educativa,sobretudo, num momento em que as questões da educação são permentes.
A ausência de Portugal durante quase 18 anos talvez justifiquem este meu desentendimento das coisas esta Terra
obrigada pelos textos produzidos e até já
albinasantossilva@gamil.com
 
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semelokertes marchimundui
 
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