Inquietações Pedagógicas
"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…" Jorge de Sena in Metamorfoses
27.11.07
ESTUDO SOBRE A REORGANIZAÇÃO DA CARREIRA DOCENTE DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
O sociólogo João Freire é o autor do estudo que lançou a reforma da carreira docente não superior. Poucos tiveram o privilégio de ler este estudo, cujo relatório final foi entregue em Dezembro de 2005 e que permite compreender melhor as opções técnicas e os pressupostos ideológicos essenciais da acção do governo no sector da educação. Apresentado publicamente em Fevereiro deste ano[1], no âmbito de uma conferência internacional, propõe-se aqui uma leitura atenta e crítica. Os objectivos do estudo indicados pelo Ministério da Educação (ME) foram, consta no início do relatório: “a revisão urgente do modelo de progressão nas carreiras de educadores de infância e professores do ensino básico e secundário, norteada pelo princípio da valorização da prática lectiva e sustentada por referências comparativas com outras carreiras profissionais de estatuto social equivalente em Portugal e com as carreiras homólogas em outros países”. E refere ainda João Freire que “ a responsabilidade do autor esgota-se com a entrega do relatório final”.
[1] O Relatório irá em breve ser publicado como anexo às Actas da Conferência Internacional ”PROFESSORES NA EUROPA - condições de trabalho, perfil profissional e carreira” promovida pelo IED e a Fundação F. Erbert
ESTUDO SOBRE A REORGANIZAÇÃO DA CARREIRA DOCENTE DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
Um exemplo de reconstrução normativa da “profissão docente”
João Santos* [1]
O lançamento do ano lectivo 2007-08 faz-se sob o signo do novo Estatuto da Carreira Docente. E quando nos interrogamos sobre as ‘raízes intelectuais’ do Estatuto e do concurso para professor titular que se lhe seguiu, não ficaremos, seguramente, muito surpreendidos se soubermos que se devem a um sociólogo do trabalho respeitado[2], com quem a actual ministra da Educação colaborou, já na presente década, em duas publicações colectivas. João Freire (JF), o sociólogo em questão, apresentou ao ME um Estudo de que ainda hoje, supõe-se, o ME continuará a respigar propostas. Este Estudo será, talvez, a melhor porta de entrada num universo de representações do mundo escolar, e dos problemas de ‘governabilidade’ que coloca, hoje preponderante na equipa do ME, não dispensando uma leitura atenta do texto integral.
Por tudo isto, propõe-se uma breve incursão pelo Estudo de JF, tentando, entre outras coisas, secundar o autor no seu reconhecimento de que se trata essencialmente de uma construção normativa, o que, parece-me, o diminui largamente, a despeito da muito evidente seriedade e qualidade do exercício.
Comparação inconclusiva, «convicção fundada»
Intrigante, desde logo, é que o autor reconheça, em «Reflexões finais», ao fim de mais de 100 páginas, que o exercício de comparação a que se entregou na primeira terça parte, como preliminar ao projecto que submeteu à Ministra da Educação, «não pôde constituir, verdadeiramente, uma fundamentação para as propostas de reorganização do estatuto profissional dos professores» (pág. 103), embora lhe reconheça a virtude de ter permitido atingir um «patamar de convicção fundada» relativamente às fragilidades da situação actual.
Tem João Freire razão nas muitas observações avulso que vai espalhando um pouco por todo o Estudo? Seguramente, se as tomarmos como máximas de índole prudencial, aplicáveis em qualquer contexto profissional, e para além. Deveria obrigar-se a aceitar o espartilho orçamental que lhe propuseram? Com certeza. Qualquer exercício com dimensão prospectiva aceita exercer-se sobre um conjunto de condições que o investigador se fixa ou outros lhe propõem. Deveria obrigar-se a desenvolver o exercício proposto sem considerar o modelo de gestão em vigor, os cargos, hierarquias, funcionais e simbólicas, competências que encerra? Não. Do mesmo modo que não poderia nem deveria ter-se dispensado de observar a configuração da rede e de sopesar o peso específico presente da persistente indiferença das tutelas à imperiosa necessidade de encerramento de cursos e estabelecimentos de formação inicial de professores na rede pública e travar a sua persistência na rede privada, na óptica da racionalização do regime de acesso à carreira.
Mais: deveria ter-se apercebido, desde o início, de que essa era uma ‘armadilha estrutural’ que comprometia definitivamente o exercício. Mas aqui afigura-se indefinível a fronteira entre o pensamento do ME e o pensamento do autor, tão solícito e aderente este parece relativamente ao ar do tempo e à absoluta sintonia cronológica com a reforma das carreiras na administração pública e respectivos encargos remuneratórios (veja-se o ‘conflito’ com o exercício proposto pelo GEF a págs. 94-5). Com efeito, o ‘fundamento’ último do exercício parece encontrar-se do lado de uma «visão própria da situação, que julgámos ser, no essencial partilhada pelos responsáveis do ME» (p. 103).
A retórica da profissionalidade
O Estudo, dividido em 8 capítulos ou secções, compreende, então, dois grandes momentos, de muito desigual extensão. No primeiro, o autor esclarece-nos quanto à missão de que é incumbido, ao que se seguem um diagnóstico e um exercício comparativo, segundo dois eixos: confronto com outras carreiras em Portugal; confronto com outras carreiras docentes em países europeus. No segundo momento, ocupando cerca de 2/3 do documento, JF ocupa-se do desenho de uma estrutura de carreira alternativa, desenvolvendo com invulgar minúcia os aspectos relacionados com a avaliação e a transição para o novo quadro normativo. Se é manifesta, no texto, a pressa de JF em deixar para trás o diagnóstico, para melhor se dedicar ao desenvolvimento do seu (?) pensamento sobre o que deve ser a carreira, é, pela mesma razão, essencial compreender o diagnóstico e o sentido geral das comparações. Porque aí estão dados os pressupostos do que virá a seguir, apesar da reserva enunciada no final, e atrás reproduzida.
Desde o início, João Freire aceita definir a actividade remunerada dos professores nas escolas como uma profissão. Como sabemos, antes mesmo do Estatuto de 1990, já a retórica da profissionalidade docente estava no centro da agenda dos sindicatos e dos governos. Trata-se, com toda a evidência, de um «facto normativo», passe a contradição nos termos, algo que se dá como orientação para que a realidade se encarregue, se as coisas correrem bem, de o confirmar depois. Não correu bem, nem no plano da análise nem no plano dos factos, nem, muito menos, no plano da legitimação das políticas públicas. Desde logo, no plano da análise, posto que, à pergunta pelas evidências empíricas que denotam a profissionalidade, se respondia com um amplíssimo «dever ser» – «Hoje/ No futuro, o professor tem de ser [seguido do elenco dos atributos]» – sem a menor precaução em controlar os efeitos de uma auto e hetero-descrição que mais não fez do que agudizar os sinais de desconformidade entre o exigente modelo e as insuficiências dos indivíduos, das instituições (fica bem, aqui, falar das «entrenched burocracies») e, até certo ponto, das políticas, com destaque para as de formação e recrutamento (onde o ‘escândalo’ do desajuste entre a procura e a oferta e a indispensabilidade de uma revisão geral dos critérios de admissão eram uma evidência há já uma década e meia)[3].
Estamos, então, perante uma profissão que busca as condições da realização da respectiva profissionalidade. É isto que João Freire aceita como um dos pressupostos básicos da sua análise, e é por isso que não lhe custa abdicar, desde o início, de se pronunciar sobre a gestão das escolas, i.e., sobre a forma e natureza das instituições em que se exerce esta profissão. E será pela mesma razão que aceita tratar como profissões, ao mesmo título, os professores, os oficiais do Exército, os docentes universitários, os enfermeiros e os técnicos superiores da administração pública, no exercício comparativo entre as respectivas carreiras.
Profissão ou vocação?
E que se entende por «carreira profissional dos docentes»? Na opinião de João Freire, oferecida obliquamente sob a forma de um elenco de «princípios de legitimação», é um dispositivo que compreende a «identificação» da e a «adesão (vocacional, antes de instrumental, o que nem sempre se verificará) à função nuclear da profissão (ensinar e educar)», implicando «enquadramento (coordenação de actividades, orientação, conselho, participação em decisões) dos docentes mais novos», a «existência de uma hierarquia profissional [...] de base meritocrática» e o «desenvolvimento de uma carreira profissional organizada no sentido de uma progressão que tenha em conta a antiguidade e a experiência adquirida, e pontuada por momentos fortes de avaliação sancionados pela ascensão a uma categoria subsequente» (p. 18, itálicos do autor).
Para além deste núcleo de atitudes, funções e critérios, e depois de devidamente considerado o lado mais penoso de um sistema de progressão que implicitamente reconhece não conciliará nunca o mérito com a quota – «no entanto, deve ser acautelado o efeito perverso de os não seleccionados nem promovidos poderem ser considerados como “incompetentes”, “falhados” ou por qualquer forma desconsiderados»! –, João Freire não esquece uma referência às modalidades de intervenção dos professores na gestão das escolas e do sistema. Assim, deve-lhes ser concedida a «possibilidade de participação directa e pessoal [...] nos processos de gestão do ensino, ao nível da escola, da zona pedagógica, da região e nacional, por via de eleições, nomeações e concursos» (pág. 19).
«Ser professor é, primariamente, ensinar durante toda a vida» (pág. 12). Mas, como facilmente se depreende no decurso da leitura, ‘autêntico’ professor é aquele que ‘adere vocacionalmente’, não ‘instrumentalmente’, à função de ensinar e educar[4]. Se há traço característico no documento de João Freire é esta insistente apologia da forma moralmente certa de exercer a profissão ou, como ele gosta de dizer, realizar o «acto profissional». Dizia o poeta que «não há cavador só do exterior». É isso, e nada menos, que João Freire postula: o professor deve subordinar a dimensão instrumental (leia-se: usar o ofício para sustentar a vida) ao ‘chamamento’[5] onde se fundem o fazer e a gratificação (moral, intelectual) do fazer.
Este é um primeiro grande paradoxo: ao inefável da vocação sempre se contrapôs a racionalidade instrumental (na medida em que as profissões do núcleo das ditas liberais têm em comum a troca de um serviço por uma remuneração) da profissão, entendida como ofício com algumas particularidades distintivas – o professar (exibir e sujeitar a escrutínio público) de um saber, a geração desse saber no seio do corpo profissional que lhe fixou os conteúdos legítimos, a elevada dose de autonomia individual na determinação do curso de acção mais adequado, o exercício em contextos institucionais inconfundíveis com as grandes organizações burocráticas massificadas e sujeitas a uma hierarquia rígida, a livre fixação das condições de remuneração, enfim, a auto-regulação ou regulação pelos pares, em estruturas de administração autónoma.
Mas quando JF compara diferentes carreiras profissionais, em todos os casos deparamos com percursos que se desenvolvem sobretudo, se não exclusivamente, como serviço público remunerado, em organizações que albergam múltiplas profissões. E vemos como a própria retórica oficial procura valorizar alguns deles, à luz, precisamente, do binómio instrumentalidade-pluralidade – um emprego, muitas profissões (de futuro!) – por exemplo no recrutamento de mancebos para umas FA, agora, inteiramente profissionalizadas. Do mesmo modo, diríamos, no caso dos técnicos superiores da função pública, com a sua miríade de proveniências escolares e especializações ‘na tarefa’. Estamos, na verdade, perante a prevalência total e completa da ‘carreira’ na expressão «carreira profissional», que visa tornar mais problemática a inexistência, entre os professores, de uma estrutura piramidal de carreira.
Figuras tridimensionais: a pirâmide
Ao «professorado» cilíndrico, João Freire contrapõe sucessivas estruturas piramidais: enfermeiros, a mais fechada, «com 86% na “base” [...] e menos de 1% no “cimo”»; oficiais, «62% na “base” [...] e 1% no “topo” (oficiais generais)», docentes universitários (39% assistentes contra 61% professores, por sua vez subdivididos em 51% auxiliares, 26% associados e 15% catedráticos) e, espanto do autor, ignorância total e completa relativamente à distribuição dos técnicos superiores pelas diferentes categorias, que tenta explicar como pode (pág. 21).
Mas há três coisas que se podem dizer relativamente a estes números. Em primeiro lugar, cada um destes corpos profissionais’ tem uma dimensão muito inferior à do «professorado», que é, nomeadamente pelas condições de exercício e pela natureza das «funções nucleares», a profissão mais massificada e ‘plana’. Em segundo lugar, profissões há em que o topo’ corresponde a uma certa e praticamente invariável relação numérica com a ‘base’, a qual é resultante da própria natureza hierárquica da relação funcional e da desigual amplitude e natureza da acções e decisões permitidas – ou não define JF o oficial pela função de «comandar»? Em terceiro lugar, quanto aos enfermeiros, porventura estaríamos igualmente autorizados a afirmar que se trata de uma profissão debilmente hierarquizada, em que as diferenciações não são relativas à “função nuclear» (pág. 22) mas antes àquilo que, relativamente à actividade docente se admitiu não ponderar: as estruturas de gestão e o dispositivo organizacional, com sua miríade de cargos e funções. Com efeito, não é o mesmo considerar a progressão e a promoção no âmbito do mesmo ‘eixo funcional’ ou admitir, na carreira, ou dela emergindo, derivações funcional-estatutárias que se lhe sobrepõem, configurando uma outra condição, nomeadamente remuneratória (o enfermeiro com uma especialidade ou qualificado para o exercício de cargos de gestão, para além dos de mera representação de grupo profissional em dispositivos de co-gestão ou ‘gestão democrática’), de carácter transitório ou definitivo.
Legitimar a avaliação sem evidência empírica
As coisas complicam-se quando JF compara as carreiras em Espanha, França, Alemanha, Reino Unido e Dinamarca. No elenco do que considera «aquisições comuns» não se encontra a avaliação do desempenho e no campo das especificidades nacionais faz realçar um «acesso bastante precoce ao topo da carreira (talvez entre os 50/55 anos de idade na Alemanha e cerca dos 40 na Dinamarca!?)», com a avaliação do desempenho, onde existe, «paecendo (ainda) ancorada a antigas práticas administrativas, típicas dos funcionários do Estado» (pág. 29). Estará o autor a pensar em França e nas propostas do relatório Thélot, de 2004? (Aparentemente, não, a avaliar pela bibliografia).
Na simples óptica da legitimação, a que confere compreensível importância, JF vê-se confrontado com a hercúlea tarefa de dar expressão teórica à ‘excepção portuguesa’ que perfilha. Porque, segundo paradoxo, se entrámos no Estudo sem carreira nem profissão, era enorme a probabilidade de, vencendo a proposta, virmos a ser o único país que, segundo o critério de JF (promoção após avaliação formal; expressa contingentação de lugares de topo), pode exibir as duas.
Mas há um terceiro paradoxo que emerge da proposta de JF. Excluído o facto, antecipado universalmente, de uma revisão a posteriori dos critérios de excelência não poder deixar de trazer evidentes injustiças distributivas no reposicionamento dos professores graduados nos últimos escalões da carreira, um edifício construído com o propósito de superar a inércia avaliativa e dar expressão a um critério meritocrático de excelência poderia (i) encerrar a validação retrospectiva de decisões discricionárias relativamente ao exercício de cargos e funções cujo exercício não foi monitorizado e (ii) implicar a multiplicação de instâncias de controlo e avaliação, exercendo uma pressão desproporcionada sobre as organizações e o orçamento, sem efeito expressivo no desempenho do conjunto do sistema.
E aqui entramos no segundo momento textual do Estudo, devendo reconhecer-se, agora, o emergir, de par com a questão do sentido ético do exercício profissional, daquilo a chamaria uma certa obstinação distributiva e o enquadramento da carreira em moldes que parecem aspirar a uma transposição de modelos em uso nas profissões ditas liberais. João Freire propõe, neste Estudo entregue à tutela no final de 2005, uma carreira com três patamares e a possibilidade de se atingir o estatuto de «professor confirmado» com 10 anos de serviço como «professor inicial» e o de «professor titular» com 25 anos de serviço. Ao mesmo tempo, aos diferentes patamares de carreira estão reservadas tarefas distintas, consagrando-se o princípio de que os professores mais velhos, experientes e superiormente graduados têm um papel relevante na regulação, direcção e avaliação dos processos educativos e dos professores de graduação inferior. A distinção entre progressão e promoção não é nova, mas surge agora associada a dois ‘factos normativos’ novos: a contingentação de vagas e a expressa diferenciação dos conteúdos funcionais, o que o Estatuto de 2007 veio a acolher.
Autogoverno: ordem ou corporação?
Acontece que a avaliação dos professores, para efeitos de promoção, é pensada por João Freire como devendo ser dirigida e realizada sob a alçada do que chama «colégios nacionais de disciplina», que incluiriam 400 ou 800 professores dos segundo e terceiro ciclos e ensino secundário (deixa-se de lado, para abreviar, o dispositivo reservado ao 1º ciclo), segundo integrassem famílias de disciplinas ou os actuais grupos de docência. Cada colégio teria 50 professores da disciplina/família de disciplinas e caber-lhe-ia ocupar-se da avaliação de professores, da emissão de directrizes para a avaliação do desempenho, colaborar com as DRE na constituição de júris do concurso para professores titulares, dar parecer relativamente a propostas de formação contínua, apoiar a concepção de programas, apoiar a concepção dos exames dos alunos dos ensinos básico e secundário.
O modo de funcionamento e articulações com direcções-gerais e regionais é detalhado pelo autor, bem como os custos. Assim, para 5 mil candidatos/ano a professor confirmado (‘exame nacional’), estima-se um encargo de 391,5 mil euros e para as provas nacionais de titularização, envolvendo cerca de mil candidatos/ano, 490 mil euros (discussão curricular). Os números são interessantes, nomeadamente porque deixam entrever os limites quantitativos de novos ingressos previstos e o grau de estreitamento da pirâmide promocional.
Mas a avaliação não se cinge aos momentos de promoções. Ao contrário, estas só são tornadas possíveis se o desempenho regularmente avaliado o permitir. E JF sustenta que deve ser feita a intervalos curtos, para ser simples, eficaz e, sobretudo, se converter num processo habitual, acabando por propor que se concretize na vizinhança da mudança de escalão remuneratório, com recolha anual de informação relativa a competências pedagógicas, científicas, escolares e sociais. Os itens de avaliação são discriminados (pág. 74), destacando-se esta invulgar proposta de item avaliativo para o domínio das competências sociais: «Actividades cívicas ou outras (políticas, sociais, culturais, artísticas, desportivas, etc.) e prestígio público alcançado». Em consequência, todos os professores teriam «uma classificação de desempenho a cada quadriénio» (p.76) num total de 10 avaliações ao longo da carreira.
Depressa e bem...
A transição para a nova estrutura de carreira, e particularmente o acesso dos professores de 8º, 9º e 10º escalão ao estatuto de professor titular, é pensada por JF como um processo em dois momentos: equiparação e titularização efectiva, mediante provas públicas com debate de «port-folio documental e reflexivo» relativo aos últimos 10 anos de carreira, a realizar apenas quando todo o dispositivo de avaliação estivesse montado, i.e., em 2009/10. Ponto relevante, e repetidas vezes sustentado, a rápida obsolescência e irrelevância de juízos avaliativos transactos e, mesmo, de títulos académicos e profissionais. A avaliação reporta-se a um ciclo temporal breve, sendo tudo o mais irrelevante – e esta é outra ‘aquisição’ do concurso realizado no início do Verão.
Saliente-se, aqui, apesar de muitas soluções aberrantes, a particular prudência de João Freire, em claro contraste com o caminho seguido ao longo de 2006. Quer nos tempos quer na forma de organização do dispositivo de avaliação, parece que toda a proposta se inclina para uma particular forma de autogoverno pelos pares, relativamente a momentos críticos da carreira – os momentos de promoção –, ao objecto da actividade (dimensões da «função nuclear»), aos seus instrumentos e, mesmo, ao modo de resolver as imputações de incompetência profissional (ao lado do poder disciplinar). Os «colégios de disciplina» aí estão, a lembrar os colégios da especialidade das ordens profissionais.
Mas, sobretudo, atente-se na enorme prudência de JF relativamente à governação das escolas: «É um modelo [o actual] [...] que não encontra uma alternativa claramente superior» (p. 66). Será por isso que, após apressada titularização, não se descortina um rumo para a gestão capaz de, em alternativa, deslocar definitivamente para o topo da cadeia administrativa uma legitimidade que residia, e ainda reside, mas mal, numa base essencialmente anómica?
Seja como for, na sua paixão distributiva, sem dificuldade o reconheço, o Estudo de João Freire é bem o texto de um justo. E como tal deve ser lido.
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*Professor do Ensino Secundário
[1] Dedico esta prosa à minha amiga FP, que muito se zangou quando lhe disse que não sei o que é um bom professor.
[2] Cf. Pacheco Pereira, «Memórias dos tempos radicais: biografia bem pouco “comum”», Público, 16.6.07
[3] Na campanha eleitoral para a AR realizada em 91, o maior partido de então gabava-se de ter relançado a natalidade. Um membro do governo, em 2007, faz depender da adequada compreensão do fenómeno demográfico a orientação vocacional dos candidatos à frequência do ensino superior. Se parece sensata esta proposta, entre cidadãos sem responsabilidade política, o governo, a autoridade pública, pode mais do que devolver-nos os truísmos de todos os dias.
[4] Pág. 38: «[...] como actividade vocacional, a função docente é, em si mesma, bastante gratificante, quer do ponto de vista profissional, quer humano. Contudo, esta característica é muito perturbada pelo facto do “vocacionalismo” estar culturalmente em crise na Sociedade e muitos professores terem vindo a adoptar atitudes essencialmente instrumentais em relação à profissão [...].» E mais adiante, na mesma página: «A “atitude assalariada” de muitos professores tem também sido reforçada por um certo tipo de acção sindical [...].»
[5] Veja-se, em contrapartida, o modo como se refere à situação presente dos oficiais do Exército: «apesar de uma tendência crescente para a profissionalização, mantêm-se ainda bastante marcados pelos valores-chave da “doação à Pátria” tradicionais da condição militar (juramento solene que inclui o “sacrifício da própria vida”), sendo as suas prerrogativas específicas vistas pelo próprios como as contrapartidas desse “contrato de sangue”. (pág. 23)
Publicado no Jornal de Letras - Educação - Novembro de 2007
Comments:
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Seria possível aceder a esse "estudo" do sociólogo? Sou Psicóloga social e ha muito anseio saber quais as fontes do pensmento da actual ministra da Educação. Da sua reestruturação da carreira docente. Seria possível mo fornecer?
Vasco
Vasco
Um artigo muito interessante que devia ter maior divulgação.
De facto este ECD está muito feito à imagem e de acordo com os interesses do ensino superior.
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De facto este ECD está muito feito à imagem e de acordo com os interesses do ensino superior.
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