Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

23.1.08
 
JOAQUIM BAIRRÃO: um teórico forçado à prática?
Júlia Serpa Pimentel* e Isabel Felgueiras**


Em Junho de 2003, Joaquim Bairrão escrevia, sobre si próprio, a seguinte interrogação há dias encontrada: “um teórico forçado à prática ou um prático forçado à teoria?”. Esta dúvida retrata bem o Joaquim Bairrão que aqui é recordado.

Nascido em 1935, a sua formação universitária iniciou-se com a Licenciatura em Filosofia pela Universidade de Lisboa que conclui em 1964. Logo que termina a sua tese, intitulada “Aspectos Psico-sociais da Motivação”, já na área da Psicologia, vai para Paris como bolseiro da Fundação Gulbenkian, onde obtém o “Diplôme d’Etudes”, no “Institut de Psychologie - Université de Paris» (1967). Em 1977, faz o Doutoramento em Psicologia na Universidade de Paris – Nanterre, sob a orientação de Zazzo. A sua incessante busca do conhecimento científico e as inquietações filosóficas e epistemológicas marcaram a sua vida profissional em que se assumiu como “eterno aprendiz”, faceta sobre a qual Emílio Salgueiro, psicanalista, diz: “O último grande interesse científico do Joaquim Bairrão foram as ‘neurociências’. Jubilado pela Universidade do Porto, inscrevera-se prontamente numa pós-graduação da “Open University” do Reino Unido, centrada neste tema: a irrequietude mental do Joaquim Bairrão impedia-o de estar ‘parado’, ‘desocupado’, muito tempo. Seguia, dir-se-ia religiosamente, as ‘lições’ vindas regularmente pela Internet… No fim de cada módulo prestava as necessárias provas de proficiência quanto ao aprendido, o que fazia sempre com alguma apreensão, como se dependesse da ‘nota’ obtida um reforço vital para a auto-estima do Joaquim-Bairrão-adolescente, que se mantinha bem vivo dentro dele”.

Em 1967, regressado a Portugal, cria o Centro de Observação Médico-Pedagógico (COMP) a convite do Ministério da Saúde e Assistência, deixando para trás o desafio de Zazzo para permanecer em Paris. Maria Belo, hoje psicanalista, a primeira psicóloga a integrar o COMP, relembra: “Bairrão Ruivo, que se formara em Paris, fora o primeiro psicólogo português a ter voltado para Portugal para exercer como tal. Ficou para todos nós, até pela sua forma de estar, como o percursor. Era inteligente, líder e rigoroso no seu trabalho. Mas tinha também a contradição interna de quem viu e aprendeu com a Europa, mas é genuinamente português. Fomos muitos a sofrer desse mal”.

Entre 1968 e 1992 dirige essa instituição, com prestígio nacional e internacional pelo trabalho relevante na avaliação e intervenção com crianças e jovens com necessidades especiais e suas famílias. Joaquim Bairrão foi pioneiro ao introduzir a dimensão interdisciplinar na equipa que formou, integrando psicólogos, médicos pediatras e pedo-psiquiatras, enfermeiras, assistentes sociais, educadoras, professores e terapeutas, recorrendo também à consultadoria de especialistas de reconhecido mérito nas áreas da neurologia, genética, oftalmologia e otorrinolaringologia.

O COMP/COOMP/DSOIP (Centro de Observação e Orientação Médico-Pedagógico, mais tarde Direcção de Serviços de Orientação e Intervenção Psicológica) foi, para muitos, local privilegiado de aprendizagem: pela atitude de permanente questionamento das práticas e pela constante actualização de conhecimentos que Joaquim Bairrão exigia e proporcionava, através de contactos regulares com especialistas estrangeiros. Jorge Vala, hoje investigador no Instituto de Ciências Sociais, salienta: “Quando, há muitos anos, cheguei ao COOMP para estagiar, não procurava formação num campo de intervenção específico, mas um ambiente de estímulo intelectual e de formação na pesquisa. O COOMP foi talvez o primeiro centro de investigação em Psicologia no nosso país. Um centro de estudo, de criação, de produção teórica e de apoio à intervenção. Bairrão havia sido meu professor e com ele aprendi o essencial num processo de investigação: inquietação intelectual e rigor no teste de hipóteses”. De facto, a “prática” não bastava para contentar o espírito inquieto de Bairrão que cedo iniciou, no COOMP, trabalhos de investigação pioneiros na área da Deficiência Mental, das Crianças em Risco, da Intervenção Comunitária e da Intervenção Precoce.

Maria da Graça Andrada, médica especialista em desenvolvimento e reabilitação pediátrica, recorda a colaboração que mantiveram no âmbito da Sociedade Portuguesa para o Estudo Científico da Deficiência Mental: “Trabalhámos juntos com a Professora Levy e outros membros, constituindo uma equipa multidisciplinar … procurando encontrar uma linguagem comum e aprofundar os conhecimentos nas neurociências, neurodesenvolvimento e psicologia do desenvolvimento. Lembro com saudade os “Encontros Nacionais de Educação Especial” e a “Revista do Desenvolvimento da Criança” … onde a sua presença, o seu saber e a sua experiência foram imprescindíveis. Tinha um grande coração que acabou por o trair. A Medicina tem destas incongruências.”

Ao recordar a evolução da justiça de crianças/jovens e de família em Portugal e reportando-se à década de 70, Armando Leandro, Presidente da Comissão Nacional de Protecção das Crianças e Jovens em Risco, salienta Joaquim Bairrão e João dos Santos entre aqueles que “… mais influência tiveram no desenvolvimento de uma cultura de transdisciplinariedade no diagnóstico das situações humanas que se colocam a essa justiça … Com naturais repercussões na postura de vários dos agentes com responsabilidades no suporte e na aplicação dessa justiça…” Diz ainda: “Com a emoção da imensa saudade, recordo a lição… quando, em Maio de 2007, anuiu generosamente a proferir, em Évora, uma conferência…que teve como tema «Educação. Um direito, uma responsabilidade». Experimentei o mesmo encantamento com que, 30 anos antes, ouvia, como juiz, as suas sábias explicações acerca dos fundamentos dos diagnósticos e propostas de intervenção da distinta equipa que dirigia sobre as situações de crianças e jovens e famílias que reclamavam a nossa atenção e decisão”.

Também Luís de Miranda Correia, Professor Catedrático na Universidade do Minho recorda “… o professor, o cientista, o colega, com o qual nem sempre estava de acordo, mas por quem nutria a maior consideração e admiração. Sinto profundamente a sua partida, embora esteja certo que as lições que nos deu, nas mais diversas áreas da vida, constantemente com um sorriso contagiante e uma muito forte determinação, permanecerão para sempre entre nós”.

Iniciou em 1979 a sua carreira como docente e investigador na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto donde se jubilou em 2005, sendo, à data da sua morte, Professor Emérito. Salienta-se a criação do 1º Mestrado em Intervenção Precoce em Portugal e a direcção de vários projectos nacionais e internacionais no âmbito da educação pré-escolar, qualidade dos contextos educativos, interacções da criança em contexto familiar e de creche e intervenção precoce, cujas conclusões contribuíram para a tomada de decisões a nível de políticas educativas.

Invocando o seu papel como mentor de projectos de investigação e de intervenção e como professor, os seus colaboradores mais directos na FPCE-UP realçam: “sempre incutiu à equipa a ideia firme de rigor científico associada à convicção de que o Homem pode mudar a realidade e que as condições necessárias para tal mudança se radicam na partilha de saberes entre os membros da comunidade tanto civil como científica… Distinguiu-se pela constante procura de ideias e de projectos inovadores, estimulantes e promotores de mudança em que sempre envolveu toda a sua equipa, motivando-a e desafiando-a através de calorosas discussões e do seu particular sentido de humor”.

Ana Serrano, Professora Auxiliar na Universidade do Minho, recorda-o na sua luta em torno da Intervenção Precoce: “Foi sempre persistente na defesa dos direitos das crianças em risco, e, apesar do seu problema de saúde, esteve sempre empenhado nas reuniões com responsáveis do governo, no debate sobre as nossas preocupações face à nova legislação da Intervenção Precoce. Para mim ele será sempre uma referência histórica nesta área”.

Integrava o “Transatlantic Consortium in Early Intervention”, constituído em 2002 por investigadores de sete universidades da Europa e EUA, com uma vertente de ensino e investigação pós-graduada (Mestrado Internacional em Intervenção Precoce) que, através do intercâmbio de docentes e discentes, fomentou o conhecimento científico e práticas de excelência.

R. Simeonsson, membro do Consortium, ao ter conhecimento da sua morte, escreveu: “Joaquim Bairrão tocou as vidas de todos os que o conheceram e de muitos que não o conheceram … a sua presença permanece connosco nas suas diferentes facetas - defensor activo das crianças, professor dedicado, “sábio” filósofo, investigador inquieto, mentor atento dos seus alunos e, acima de tudo, amigo generoso… A sua visão era ampla, o que levou os seus colegas internacionais a concederem-lhe o título de “ Distinguished Transatlantic Professor”. O seu caloroso afecto e simpatia são inesquecíveis para todos quantos com ele mantiveram uma amizade duradoura…”

Autor e co-autor de numerosas publicações em língua portuguesa e inglesa, recebeu em 1994 o Prémio APPORT de Reconhecimento na área da Psicologia, e em 1998 foi agraciado pelo Presidente da República Jorge Sampaio com o grau de “Grande Oficial da Ordem de Mérito”.

Para além da sua carreira científica, de que aqui se fez um brevíssimo resumo, a sua faceta de conversador e contador de histórias deixa, em todos os que com ele conviveram mais de perto, uma enorme saudade, que leva E. Salgueiro a escrever: “… sentia-se doente e em risco de morte, mas o prazer em estar vivo e em apreciar tudo o que de bom a vida continha, levou-o a aceitar o último desafio da ‘transplantação cardíaca’, cujo resultado funesto o impediu de continuar a construir projectos vivos de aprofundamento do saber e nos deixou, a todos, tristes e mais pobres. Recordemos o Joaquim Bairrão bem vivo, com o seu bom humor e a sua curiosidade inesgotável, e lembremo-nos do muito que ganhámos em o termos conhecido e beneficiado da sua amizade”. No seu Jubileu, José Alberto Correia, chamou-lhe “Electrão Livre”. De facto, as convicções, princípios e valores por que sempre lutou tornaram-no, em muitas circunstâncias, “incómodo” ao poder científica ou politicamente instituído. Também por isso vai fazer falta

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*Psicóloga e Professora no Instituto Superior de Psicologia Aplicada
**Psicóloga e Chefe de Divisão no Instituto Nacional para a Reabilitação

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