"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…" Jorge de Sena in Metamorfoses
SABER ENSINAR:
Lança-se aqui um alerta para a formação de professores, quando se está a facilitar o “apagamento”das Escolas Superiores de Educação, quer pelo progressivo desaproveitamento dos recursos e da competência instalada, quer por se irem desvirtuando/desfocando os fins para que estas escolas foram criadas. As legítimas preocupações com as baixas taxas de escolarização e com o fraco desempenho escolar dos alunos portugueses têm, na ânsia de identificar bodes expiatórios e de recorrer a respostas imediatas e fáceis, “deslocalizado” o debate e desvalorizado a rede de oferta já existente, resultado de um elevado esforço e investimento nacional, sempre esquecendo que, como mais adiante se dirá “as dificuldades de aprendizagem das crianças … não podem ser separadas das dificuldades de ensino e que estas, por sua vez, não podem ser desconectadas dos modos de formar os professores” . Mas formar professores - porque “o professor profissional – como o médico ou o engenheiro nos seus campos específicos – é aquele que ensina não apenas porque sabe, mas porque sabe ensinar” - não é uma tarefa fácil, mas constitui por certo “o instrumento por excelência das reformas” em educação.
A Competência do Professor [1]
Maria do Céu Roldão*
Num texto apresentado em 2007 pela Comissão Europeia ao Conselho e ao Parlamento Europeus, intitulado “Para o Desenvolvimento da Qualidade da Formação de Professores”,[2] enunciam-se quatro princípios para o desenvolvimento da competência e qualidade da formação (Common Principles for Teacher Competences and Qualifications) de que aqui destacamos dois. Dizem eles respeito (1) à qualificação superior dos professores e correspondente expectativa de elevado nível do seu conhecimento, e (2) à sua condição de lifelong learners, vinculados pela natureza profissional do seu trabalho, ao imperativo da actualização e construção permanentes de conhecimento. Estas duas dimensões remetem o leitor para duas questões muito simples mas essenciais para se pensar com eficácia a melhoria da formação e do desempenho dos docentes: 1) O que faz um professor? O que define a sua acção profissional? 2) Que precisa ele de saber para desempenhar bem a função em causa?
Dito doutra forma, trata-se de estabelecer com algum rigor a função e o saber que distinguem a actividade docente, para a partir desses referentes equacionar a natureza, os requisitos e o desenvolvimento mais adequados da respectiva formação.
Importa tomar consciência de que as intervenções orientadas para a melhoria efectiva do desempenho docente e, consequentemente, para o investimento na formação de docentes, se reportam a um processo que se aproxima de uma ruptura na representação do que é docência mais do que duma simples melhoria nos recursos e planos formativos e sua organização.
Partimos assim de alguns pontos prévios:
1- A representação social actual da actividade docente remete-a para um estatuto de semi-profissão (no sentido sociológico do conceito de profissão, caracterizado essencialmente por função social reconhecida, autonomia de desempenho e domínio de saber próprio para a função) por um conjunto de razões muito diversas – pelo peso da associação do ensino a uma actividade de natureza sobretudo prática; pela dimensão histórica da sua funcionarização associada à dependência do Estado; e ainda pela idealização/ideologização quase missionária, mais que profissional, tantas vezes associada à docência.
2- Existe uma fragilidade do conhecimento profissional específico dos docentes, não obstante os saberes gerais que sem dúvida dominam; essa fragilidade conduz a que se atribua a capacidade de ensinar a qualquer pessoa que conheça um assunto ou tema, como se ensinar nada requeresse de saber específico para além do conteúdo; esta vertente está em contradição com o elevado nível de qualificação académica de que o grupo é portador;
3- A alegada ineficácia da formação de professores resulta da ilusão da suficiência do conhecimento prévio ao exercício – inaceitável em qualquer outra profissão - e da pouca focagem no conhecimento profissional específico e nos instrumentos da sua construção e uso.
A representação da actividade docente – que é ser professor?
A enunciação desta questão pode parecer deslocada, na medida em que convergem na representação social da actividade docente um conjunto de naturalizações que, sob a suposta evidência, ajudam a tornar difuso o seu perfil.
Assim, a ideia mais elementar do professor como alguém que ensina alguma coisa a outros, contamina-se por um lado com uma noção arcaica de ensinar como apresentar/ transmitir conhecimentos formalizados, por outro com o esbatimento da acção de ensinar face a concepções teóricas que colocam no centro a aprendizagem do outro.
No plano conceptual, estas linhas têm vindo a ser lidas dicotomicamente pela sociedade e pelos próprios docentes, acentuando ou a supremacia arcaica da prática docente como sinónima de apresentação de conteúdos, ou o esbatimento da acção docente em favor de uma alegada maior ênfase na acção do aluno.
Na verdade do que parece tratar-se é da necessidade de reconceptualizar a própria noção de ensinar, interrogando os conceitos prévios que lhe subjazem. Como vimos desenvolvendo noutros textos, o que distingue a função docente que caracteriza o professor reside sim em ensinar, mas ensinar entendido como uma actividade transitiva, traduzida na competência de fazer com que os outros aprendam. Contudo, tal concepção não corresponde a uma redução do protagonismo do professor, supostamente “devendo” deixar a aprendizagem entregue à responsabilidade e iniciativa do aluno, o que, tomado à letra, conduz perversamente à inevitável acentuação das diferenças sociais e culturais de partida. Pelo contrário, requer-se da sua parte uma actuação muito mais sólida e diferenciada, contextual, e fundada num conhecimento profissional mais complexo. Esse conhecimento profissional inclui, como Lee Shulman tão claramente sistematizou nos anos 1980, e divulgou em artigo de 1987 na conceituada Harvard Educational Review, o conhecimento de: conteúdo a ensinar; processo cognitivo do aprendente; significados culturais associados aos conteúdos curriculares; influência dos contextos dos alunos na sua percepção dos conceitos; construção adequada de estratégias de trabalho e avaliação, com capacidade de permanente regulação.
Que conhecimento distingue um professor?
O conhecimento específico, distintivo, requerido para ensinar, no sentido que atrás explicitámos, é assim um saber eminentemente complexo e compósito.
O que distingue o conhecimento profissional que qualifica os professores para o exercício, retomando os Common Principles for Teacher Competences and Qualifications, assenta na especificidade do saber docente, e deverá por consequência informar todas as políticas e práticas de formação de professores, alimentadora de um desenvolvimento profissional continuado, à semelhança do que se passa em outras profissões, como o médico ou o arquitecto. Tal especificidade resulta da sustentação que esse saber oferece para (1) desempenhar adequadamente a acção de ensinar, (2) ser capaz de pensar e teorizar essa acção, e (3) dominar os instrumentos da sua efectiva e permanente melhoria. Importa assim desconstruir a ideia do professor como apenas um prático dispensado de teorizar, tanto quanto a do professor como um apresentador ex cathedra de conhecimento formalizado.
A redução da prática de ensino à ideia de actividade prática, na leitura corrente de professores e futuros professores expressa em inúmeras investigações da última década, conduz a uma cultura profissional que se vem manifestando como largamente resistente à chamada teorização, à conceptualização do agir docente, à sua desmontagem crítica, e analítica, com prejuízo da sua autonomia e da sua competência para reorientar a acção e melhorar os resultados.
O contributo de Donald Schön, na década de 1980 e seguintes, para a teorização do conhecimento profissional em geral – não apenas no caso dos docentes, mas em diversas profissões que no seu trabalho analisou em detalhe – clarifica a indissociabilidade do conhecimento profissional relativamente à prática profissional que lhe corresponde. No essencial, Schön abandona a ideia aplicacionista muitas vezes associada à expressão “relação teoria/prática”– assumindo o conhecimento teórico como supostamente prévio e posteriormente “aplicável” à prática - para salientar a prática profissional como elemento-chave da própria produção de conhecimento, mediante dispositivos de reflexão/construção adequados, associados à natureza singular e imprevisível do agir profissional e das questões que dele emergem.
Trata-se assim de abandonar a visão do professor como um “prático” – alguém que dá aulas - substituindo-a pelo reconhecimento da centralidade da prática profissional nos seus contextos reais como alimentadora, geradora e integradora de saber profissional próprio, por sua vez alimentado quer por saberes formalizados previamente apropriados e constantemente renovados, reconstruídos e ampliados face às situações ( os “casos” na terminologia feliz da profissão médica), quer pelo questionamento analítico-investigativo (reflexivo, na terminologia de Schön) das circunstâncias, problemas, sucessos e insucessos da acção desenvolvida.
Os termos reflexividade e prático reflexivo têm sido objecto de uma banalização no léxico da administração, dos professores e das escolas que descaracteriza frequentemente a ideia-chave desta aproximação – reflexividade entendida como a teorização e a fundamentação rigorosa da acção profissional a partir do questionamento contextualizado e teorizado da sua prática.. Para que a reflexividade implique construção de conhecimento sustentado, terá que se traduzir em dispositivos analítico-investigativos, orientados para a formulação de hipóteses explicativas e sua fundamentação e verificação.
Tal prática reflexiva pressupõe ainda a análise e a discussão entre os pares face às situações de ensino e aprendizagem vivenciadas, e a produção de interpretações fundamentadas em saber, susceptíveis de ser reinvestidas na acção. Só a reflexividade assim entendida pode garantir a ruptura com a circularidade improdutiva das inúmeras discussões e trocas de opiniões realizadas no quotidiano dos professores e desesperantemente incapazes de produzir saltos qualitativos nas suas práticas, não obstante o investimento, o interesse, o empenhamento e genuíno esforço.
A prática reflexiva requer pois: (1) o recurso a conhecimento teórico e prático prévios, (2) a teorização problematizadora da situação prática em apreço e (3) a produção de conhecimento susceptível de ser comunicado a outros, e mobilizado noutras situações.
Propostas de actuação para a formação de professores no quadro das políticas dos Estados Membros da União Europeia
Tomando como referência a noção de conhecimento profissional docente assente na função e competência de ensinar que distingue o professor como profissional, e à luz da Recomendação sobre Qualidade da Formação de Professores para as políticas dos Estados Membros da UE, parece possível identificar algumas linhas orientadoras para a melhoria da qualidade da formação dos professores e consequente impacto na melhoria das aprendizagens dos alunos:
1. Assunção da formação de professores como um processo contínuo de desenvolvimento profissional
Esta perspectiva pressupõe romper com a lógica até agora dominante em duas vertentes: por um lado, pela assunção clara da natureza profissional da actividade docente e do défice actual relativamente a este estatuto; por outro, implica conceptualizar a formação inicial e contínua como um todo, estabelecendo para isso os necessários dispositivos organizacionais, nomeadamente a responsabilização das Universidades e outras instituições de formação superiores pelos vários níveis e momentos da formação de professores, regulados pelos referenciais europeus.
2. Estabelecimento continuado de parcerias de formação entre instituições formadoras e escolas
Reconhece-se a necessidade da criação de parcerias formativas entre as Universidades e Escolas Superiores e as escolas e professores no terreno, criando redes de formação em torno de cada instituição formadora, cujos recursos se podem constituir em suporte do trabalho docente nessas mesmas escolas. Isso pressupõe a inclusão explícita deste apoio às escolas e agrupamentos na missão das Universidades e Escolas Superiores, com a respectiva avaliação reguladora de resultados e procedimentos .
3. Estabelecimento da dimensão da formação dos docentes como um dos elementos da organização das escolas e da sua avaliação
Nesta vertente, importará considerar que a cultura existente, em Portugal e em alguns outros países de administração mais centralista da União Europeia, não tem esta tradição. As medidas para a incentivar não podem assim centrar-se na normatividade, nem na uniformidade prescrita de procedimentos, mas sim na regulação e no incentivo a práticas de formação concebidas e geridas pelas escolas, em parceria com as instituições de formação, para melhorar a sua acção, reflectidas na melhoria do seu desempenho e da aprendizagem dos seus alunos.
4. Estabelecimento da centralidade da prática docente supervisionada, em todos os momentos e percursos de formação
Na linha que vimos defendendo, o trabalho de formação de qualquer profissional, deverá ter como eixo estruturante a problematização e a vivência da prática profissional e seus contextos – veja-se o paralelismo com a formação médica por exemplo. Essa linha, já ensaiada e investigada em numerosas situações bem sucedidas, deverá também assumir centralidade na organização de qualquer formação de docentes.
Tal não significa uma redução da dimensão científica (pelo contrário, parece necessário reforçar a sua solidez) nem das dimensões pedagógico-didácticas que integram o saber profissional (também elas necessitando de idêntica valorização e aprofundamento permanentes). Significa sim uma reconceptualização da formação, integrando numa política global os níveis da formação inicial e da formação continuada nos contextos de trabalho, no sentido de articular a apropriação de todos os campos de conhecimento com uma adequada mobilização e uso de saber em situações de ensino concretas, apoiadas e supervisionadas.
Trata-se assim de instituir a supervisão como um dispositivo de trabalho regular nas escolas, dimensão que é hoje, no sistema português e contrariamente aos seus parceiros europeus , um espaço vazio no percurso profissional dos professores.
5.Estabelecimento da investigação como componente essencial da formação e da acção profissional
Esta questão tem sido controversa no mundo académico, ciosos que são os investigadores e académicos da delimitação do seu território, nesta como em outras áreas de saber. Parece contudo consensual a necessidade e valia do apetrechamento e capacitação dos docentes com saber e domínio de instrumentos conceptuais e técnicos de investigação, que lhes permitam tornar efectiva e rigorosa a sua reflexão analítica sobre a acção de ensino que desenvolvem e ser utilizadores competentes da investigação produzida noutras sedes.
Em jeito de conclusão…
A necessária subida dos níveis de qualidade do desempenho docente e o reforço do seu estatuto de profissionalidade, por sua vez essenciais à melhoria da aprendizagem curricular e social que da escola se espera, não podem dispensar um salto qualitativo significativo na formação de professores, que por sua vez pressupõe uma outra relação dos professores com o saber profissional e com a sua produção.
Permita-me o leitor que retome o que sobre esta temática recentemente escrevi noutra sede, e que de algum modo sintetiza o que entendo dever ser o referencial da qualidade a garantir na formação de professores como profissionais de ensino:
O professor profissional – como o médico ou o engenheiro nos seus campos específicos – é aquele que ensina não apenas porque sabe, mas porque sabe ensinar. E saber ensinar é ser especialista dessa complexa capacidade de mediar e transformar o saber (isto é, o que se pretende ver adquirido, nas suas múltiplas variantes) (…) − pela incorporação dos processos de aceder a, e usar o conhecimento, pelo ajuste ao conhecimento do sujeito e do seu contexto, para adequar-lhe os procedimentos, de modo a que a alquimia da apropriação ocorra no aprendente (…). Aprende-se e exerce-se na prática, mas numa prática informada, alimentada por velho e novo conhecimento formal, investigada e discutida com os pares e com os supervisores (…). Saber produzir essa mediação não é um dom, embora alguns o tenham; não é uma técnica, embora requeira uma excelente operacionalização técnico-estratégica; não é uma vocação, embora alguns a possam sentir. É ser um profissional de ensino, legitimado por um conhecimento específico, exigente e complexo.
(Roldão, M.C. “Função docente: natureza e construção do conhecimento profissional”. Revista Brasileira de Educação, Jan./Abril.2007 v.12 n.34: 94-103).
*Professora do Ensino Superior
[1] Texto adaptado a partir de comunicação da autora na Conferência “Desenvolvimento Profissional de Professores para a Qualidade e Equidade da Aprendizagem ao Longo da Vida”, realizada em Lisboa, em 27 e28 de Setembro de 2007, no âmbito da Presidência Portuguesa da União Europeia.
[2] Commission of the European Communities (2007). Communication from the Commission to the Council and the European Parliament: Improving the Quality of Teacher Education.
Publicado no Jornal de Letras - Educação em Fevereiro de 2008