Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

30.4.08
 
A aprovação do decreto-lei n.º3/2008 sobre Educação Especial


REGRESSO AO PASSADO
A Regressão à Educação Especial por Decreto


Sérgio Niza*

O Governo aprovou o Decreto-Lei nº3/2008 dia 7 de Janeiro e a direita parlamentar “aperfeiçoou-o” na Assembleia da República a 4 de Março com a colaboração dos Deputados Socialistas.
É criado assim um subsistema estrito de Educação Especial que se propõe promover “uma escola democrática e inclusiva” (pasme-se!). Disporá para o efeito de uma taxonomia (CIF) para classificar e seleccionar as crianças para educação especial e guiar as respectivas adequações curriculares, dispositivo concebido pela Organização Mundial de Saúde para orientar a acção médica com pacientes adultos.
A Educação Especial surgiu em finais do século XIX, como uma função de assistência educativa a crianças que, então, se considerava não serem escolarizáveis. Foi exercida por professores do ensino primário e tutelada pelos serviços médicos. Tal função remediadora foi conformando o estatuto de educação dessas crianças a um dispositivo contraditório e desumanizante de apoio.
Só muito depois, no Norte da Europa se desencadeou uma reflexão mais séria e alargada sobre as formas de marginalização a que estavam sujeitos tantos cidadãos. Procurava-se romper, então, com os sistemas asilares de assistência ou de reabilitação de pessoas desde a infância.
A ideia que emergiu e se impôs nesse extenso debate entre os anos 40 e 60 do século passado, foi a ideia de normalização da vida dessas pessoas, por reconhecerem que quem sofria de limitações físicas ou mentais teria vantagem em participar, sempre que fosse possível, em actividades da vida quotidiana.
Apesar da ideia não decorrer do reconhecimento do direito à diferença e à equidade, por que hoje nos batemos, surgia, no entanto um primeiro esboço de correcção dos dispositivos segregados de assistência, oferecidos e reforçados pela mentalidade médico-pedagógica do século XIX.
Chamou-se a essa pesada tarefa de fazer sair as pessoas dos espaços segregados para os espaços da vida quotidiana das sociedades a estratégia de integração. As formas de integração social e escolar tornaram-se progressivamente mais ágeis e tecnicamente mais bem informadas beneficiando, a partir dos anos 70, da reflexão expressa no relatório Warnock (1978) e do frutuoso ano internacional para a integração das pessoas com deficiência em 1981 com que se procurou romper com os modelos médicos para a educação e corresponder à ruptura que fazia caminho desde os anos 60, centrando finalmente a educação escolar nas aprendizagens curriculares em vez de se deixar guiar por taxonomias médicas e orientações correctoras (ortopedagógicas).
A importância histórica de se ter reconhecido em 1978 que no Reino Unido cerca de 20% dos que estudam nas escolas, podem manifestar ao longo dos vários níveis de escolarização, alguma necessidade específica de educação, ajudaram-nos a repensar as dificuldades na educação escolar.
O relatório Warnock convida-nos a concentrarmo-nos apenas em três tipos de necessidades específicas que impõem adaptações do ensino ou no contexto escolar, enquanto a estratégia da integração pressupunha uma hierarquia de respostas por meio das quais o professor e os outros técnicos de apoio deveriam fazer progredir as crianças, das formas mais restritivas de apoio para as de integração superior.
Os professores de educação especial desacompanhados pelos serviços do Ministério da Educação (ME) e traídos pela sua própria acção de docência especializada, não conseguiram resistir às pressões segregacionistas de muitos e à tentação fácil de se ocuparem eles mesmos de um ensino específico em espaços alternativos aos das turmas de integração, dos alunos que apoiavam.
Não conseguiram, assim, levar tão longe quanto deles se esperava, a sua missão “des-segregadora”, no seio de ambientes tão excludentes e selectivos como continuam a ser as escolas, sobretudo em Portugal.
A partir dos anos 90 verifica-se, finalmente, um nível mais avançado de reflexão em busca de uma cidadania democrática activamente participada. E após alguns programas de avaliação aos resultados alcançados com os frustres processos de integração desenvolvidos nas escolas, avançou-se para a necessidade de reafirmar e de garantir a realização dos direitos humanos contra a discriminação e a exclusão de um número muito elevado de crianças e de jovens. Nos últimos anos, em alternativa aos esforços incumpridos pela estratégia de integração, emerge uma justa aspiração, a de podermos dispor de sociedades acolhedoras e inclusivas. Daí decorre, por ruptura com a estratégia de integração e com a retrógrada perspectiva médico-pedagógica, uma orientação inclusiva para as escolas.
Com o actual Decreto-Lei para a Educação Especial, o ME avançou com um dispositivo de normas reestruturadoras das respostas às necessidades especiais dos alunos assente na recusa acintosa do que se conhece hoje sobre a evolução das ideias, da investigação e dos bons exemplos de práticas, descritas nas últimas décadas para evitar a discriminação e proporcionar a essas crianças e jovens oportunidades equitativas de frequência e aprendizagem nas mesmas escolas que teriam o direito de frequentar, se não manifestassem essas limitações.
As motivações e os desvios conceptuais patentes neste Decreto-Lei são, no entanto, explicitados um ano antes num artigo, “Educação Especial e Escola para Todos: Das Palavras aos Actos” (in Integração das Pessoas com Deficiência, Cadernos Sociedade e Trabalho, nº8, 2007, p.p. 83-100) do Director Geral para a Inovação e Desenvolvimento Curricular e da Directora de Serviços de Educação Especial. Retomando a orientação do projecto de Decreto-Lei apresentada pelo Ministério de David Justino, onde se criavam dois subsistemas de resposta às necessidades especiais de educação, respectivamente o da educação especial e o dos apoios sócio-educativos, esta distinção conceptual tem guiado todas as políticas do Governo actual para gerir a frequência e o nível de intensidade das limitações individuais dos alunos em contexto escolar.
Dizem os autores que “a distinção entre estes dois tipos de problemáticas é imprescindível dadas as perplexidades, excessos e contradições verificados desde que se procuraram implementar, no nosso país, os princípios da escola inclusiva” (sic). E diz-se isto apesar de não ter acontecido em Portugal nenhuma reforma inspirada na orientação inclusiva para a educação escolar e, no entanto, a co-autora dirige este sector ao longo das últimas décadas.
Procura-se agora, não só erradicar o efeito de alguns ensaios de educação inclusiva nas escolas como disciplinar as estruturas de administração das respostas como se declara em nota desse artigo: “com as medidas tomadas pelo ME de distinção entre educação especial e necessidades educativas especiais e a criação de um grupo de recrutamento de docentes da educação especial, o nosso país possui hoje um dos melhores rácios de cobertura dos alunos com necessidades permanentes a nível europeu, inferior a um docente para seis alunos”. E assim se manipulam os dados no Ministério da Educação, fazendo regredir o sistema de educação aos tempos remotos da educação especial comparando-o depois com outros tipos de respostas europeias que procuram orientar-se, efectivamente, para uma escola democrática e inclusiva. Tenha-se presente como esta informação antecipa o Decreto-Lei de Janeiro de 2008 para se compreender a situação de défice democrático em que vivemos, quando se antecipa a execução de políticas por conta de um enquadramento legal a vir.
O Decreto-Lei em referência pretende definir, portanto, os apoios especializados para adequação do processo educativo às necessidades educativas especiais dos alunos com limitações significativas, decorrentes de alterações funcionais e estruturais de carácter permanente.
Atribui-se para isso a um departamento de educação especial das escolas ou de agrupamentos a tarefa de promover a inclusão educativa e social das crianças e jovens com necessidades especiais permanentes de educação. Como poderá um departamento ou território académico circunscrito e de educação especial quebrar, na escola, os condicionalismos que essa profissão especial construiu com o seu status prestigiante mas mal querido?
Basta lembrar o que se dizia em 1981 no relatório da OCDE “A Integração na Escola” a propósito do modelo de integração para os anos 80, para se poder compreender como o esforço desta política para reforçar no século XXI o estatuto da educação especial, mais dificultará ainda o que se percepcionava nesses tempos: “O modo como trabalham diversos corpos especializados corre o risco de ser um obstáculo à adopção das formas de prestação de serviços julgados indispensáveis ao sucesso da integração” para sublinhar como os especialistas fazem obstrução à prestação de serviços de integração escolar.
No âmbito dos princípios orientadores para a educação especial avança-se no Decreto-Lei, como seria de esperar, que as escolas públicas ou com paralelismo pedagógico “não podem rejeitar a matrícula ou inscrição de qualquer criança ou jovem com base da incapacidade ou nas necessidades educativas especiais que manifestem”.
O legislador, parece assim, querer aproximar-se do que significa inclusão para o Centro para os Direitos Humanos da UNESCO (1997), isto é, “educar as crianças com desvantagens físicas ou sociais nas escolas em que se matriculariam se não estivessem em desvantagem […] fazendo com que cumpram os mesmos horários e os mesmos programas das outras crianças […] e estimular amizades entre crianças com desvantagens e os seus companheiros de classe (sem desvantagens) ensinando a todas a compreender e aceitar a diferença”.
No entanto, este Decreto-Lei nega, contraditoriamente, o significado educativo da inclusão introduzindo um sistema de racionalização tecnocrática para colocar os alunos com limitações em escolas de referência ou em unidades de ensino e apoio especializados como nos primórdios da estratégia de integração que falhou. Para agravar a situação reforça-se o apoio às instituições segregadas de educação especial, com as alterações apoiadas, inesperadamente, pelo Partido Socialista, na Assembleia da República em 4 de Março de 2008.
Assim, negando a História e condenando alguns de nós à segregação, todos ficaremos empobrecidos porque falsificámos a vida.

*Professor do Instituto Superior de Psicologia Aplicada e Director do Centro de Formação do Movimento da Escola Moderna

Publicado no Jornal de Letras - Educação em Abril de 2008

Comments:
Sou professora atuando no serviço de supervisão escolar, porém observo a mesma inquietude por parte de professores, onde se entende por inclusão,eu, particularmente vejo uma exclusão, pois, sem a mera qualificação os alunos inseridos na classe regular ,onde, os pais, aplaudem a inclusão, não percebem a vasta desarticulação que existe entre a teoria e a prática pedagógica.
 
Enviar um comentário

<< Home