Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

17.7.08
 
A ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO BÁSICA
Considerações sobre um Relatório e um Debate*

Maria José Rau*


1 - A IMPORTÂNCIA DE UM ESTUDO

Ao Relatório do estudo "A Educação das Crianças dos 0 aos 12 Anos " coordenado pela Prof.ª Isabel Alarcão a que, no último número, o JLEducação já se referiu, seguiu-se um Seminário que teve lugar no Conselho Nacional de Educação no passado dia 20 de Maio. Pelas questões que levanta, pelas análises e informações que faz e presta, pela pertinência e oportunidade das considerações o Relatório será um instrumento de trabalho indispensável para o momento em que, em tempo politicamente mais oportuno, se queira e existam condições para rever a estrutura e a organização do educação básica.

Mas tudo isto não satisfaz plenamente. É que as questões podem estar na forma como a educação se organiza e se projecta, mas estão, para além disso e sobretudo na forma como essa organização se aplica e se pratica.

O que falta então? Que riscos este relatório pode comportar? Quais os grandes vectores prioritários de actuação que se apontam?

2 - OS OBSTÁCULOS À MUDANÇA

Muito do que está em lei está por cumprir e como exemplo mais evidente veja-se a realidade das nossas escolas de hoje e o que é proposto para o Ensino Básico pela LBSE de 1986 aprovada, julgo que por unanimidade, na Assembleia da República.

Seria importante caracterizar o porquê e perceber se as resistências que têm existido ainda se mantêm, se são contornáveis e se têm mesmo de ser contornadas.

Com carácter anedótico mas exemplificativo não posso deixar de referir o que, com muito surpresa minha, em 1975 encontrei quando fui trabalhar para o Ministério da Educação e chefiar um serviço que se designava por de Acção Pedagógica. Para a Educação pré-escolar nem existia qualquer serviço de âmbito semelhante e tudo se passava dentro de uma única divisão indiferenciada, já no ensino preparatório o serviço subia de nível e passava a ser uma Divisão, mas quando chegava ao ensino secundário o nível e o estatuto eram ainda superiores e de Divisão passava-se a Direcção de Serviços. Ao SAP (Serviço) do Primário, sucedia a DAP (Divisão) no Preparatório e a DSAP (Direcção de Serviços) no Secundário! Para quem conhece a administração pública compreenderá bem de que esta hierarquia significa na consideração que se tem pelo seu conteúdo e do peso que representa, peso que, assumindo várias facetas terá sustentado e sustenta muitas formas de resistência à mudança a que temos assistido.

3. PRINCÍPIOS VERSUS ESTRATÉGIAS OU DISCURSO VERSUS PRÁTICA.

As palavras ditas pelo Prof. Jorge Alarcão no Seminário representam uma realidade terrível: "uma lei má mas bem aplicada pode ser melhor do que uma boa lei mal aplicada".

Ou como num episódio que sucedeu, julgo que nos anos 80 em Paris, durante "A Análise da Política Educativa da Suiça" feita pela OCDE, em cuja apresentação e debate tive a oportunidade de participar. Dizia uma das examinadoras que ao iniciar o estudo e ao ver a descrição do sistema educativo suíço ficara perplexa porque o achou mau, pedagogicamente inadequado e mesmo pouco democrático. Mas mais perplexa ainda ficou quando, ao visitar as escolas e entrevistar os vários intervenientes, se apercebeu que ele funcionava bem e de forma coerente e que os resultados até eram, em muitos aspectos, positivos.

Ora é esta relação princípios/estratégias ou teoria/prática na educação das crianças dos 6 aos 12 anos que no Relatório surge em segundo plano, apesar da insistência e atenção que se dá à necessidade de coerência e de articulação

É que pode ser grave ficar só na definição e caracterização da estrutura de um sistema educativo sem avançar claramente para as medidas organizativas e as práticas que a ele têm de estar necessariamente ligadas. Como muitas vezes tem acontecido entre nós, as estruturas ficam suspensas e, sem a necessária sustentação, acomodam-se ao conforto do molde que existia previamente.

4 - O RISCO DA UTOPIA

No capítulo do Relatório da responsabilidade de Teresa Vasconcelos há uma secção - "Uma penúltima proposta em jeito de utopia" - em que é feita uma citação com que julgo se querem valorizar as utopias "por não providenciarem descrições de mudança".

Mas é que exactamente por não conterem essas "descrições providenciais", que as utopias têm permitido e propiciado:
- que, como diz Natércio Afonso no Relatório, no caso do segundo ciclo do Ensino Básico, "o peso da tradição mono-disciplinar se impusesse ao normativo", normativo em total dissintonia com os quadros profissionais que sustentavam (ainda sustentam) o sistema de colocação de professores;
- que o perfil profissional do professor a formar pelas Escolas Superiores de Educação que se iam criar - e que envolveram elevados investimentos e um vultuoso empréstimo do Banco Mundial - perfil que sustentou todos os estudos financeiros que justificaram essas escolas, fossem, logo de seguida esquecidos e pervertidos;
- que o entendimento dos critérios de criação de escolas e de constituição de agrupamentos escolares tivessem facilitado, ainda num tempo muito pouco longínquo, tanto promover, numas regiões, as escolas C+S e a relação preferencial dos jardins de infância com escolas do 1º ciclo, como noutras os centros escolares dos 3 aos 12 anos e, mais grave ainda, de uma forma muito generalizada e ainda hoje, propiciar a colonização do 1º ciclo pelo 2º , se não no tempo curricular pelo menos no tempo extra-curricular!
- que, ao dissertar sobre os muitos modelos organizativos possíveis para o ensino básico, incluindo nessa dissertação a questão magna das repelências ou das progressões automáticas (progressões anuais como se diz num dos capítulos do relatório) quase sempre se não refiram, como sustentáculos essenciais de qualquer estrutura, as respostas necessárias para a magna questão: que fazer aos repetentes ou como ajudar os que, não existindo o escape da repetência, não querem/conseguem aprender mas precisam de ajuda para progredir. E há tantas e diversas práticas institucionalizadas, com diferentes tipos de sucesso, mas com razoável coerência com o que se pretende da educação e da sociedade nos vários países com que regularmente nos confrontamos (das progressões automáticas com "learning mentors" na Finlândia à diferenciação de fileiras de ensino na Suiça ou na Alemanha, etc.)!

Outro risco da utopia e que resulta directamente de "não (se) providenciarem descrições de mudança", é surgirem expressões - a sustentar estratégias - como "aproximações progressivas" ou, mais perigoso ainda, avanço em "geometria variável". Prefiro a ideia de progressão faseada, porque, não podendo deixar de prever ajustamentos de percurso, implica que se descrevam os passos das mudanças e neles se considerem momentos e fundamentos para as previsíveis reacções, para as difíceis e prolongadas negociações, para a obtenção de consensos (ou para a coragem de ir avante sem os obter!) e para a consideração e institucionalização das imprescindíveis medidas/estruturas de apoio.

Neste percurso pelo passado não posso deixar de lembrar como descreveram o nosso sistema educativo, os examinadores da OCDE, quando, em 1981, fizeram o exame da política educativa de Portugal: "Era como se arquitectos com concepções radicalmente diferentes tivessem sido nomeados, em sucessão rápida, para um mesmo projecto. Cada arquitecto, antes de ser substituído, teria tido o tempo exactamente suficiente para apresentar um projecto de grande envergadura e, por vezes, para derrubar ou pelo menos minar qualquer estrutura já existente que lhe fizesse obstáculo!". Já estamos melhor do que em 1981, e já conseguimos ter alguns Ministros da Educação que se mantêm os 4 anos de uma legislatura, mas o vício está lá e a falta de planeamento e capacidade de sistematizar a previsão pode fazer que no fim das progressivas aproximações se atinja o oposto do que se pretendia. É que a aproximação pode passar ao lado do essencial, nem que seja para evitar conflitos ou contrariar o antecessor!

Como mero exemplo recente vejam-se os recuos e avanços que tem tido o processo da avaliação externa das escolas entre 1998 e 2008! E não se está a por em causa a bondade, o mérito e a dedicação à causa pública dos sete Ministros/Ministras da Educação que tivemos durante esses 10 anos!

5- CONSIDERAÇÕES E RECOMENDAÇÕES

Estou em total consonância com as áreas de intervenção identificadas "com vista a uma coerência educativa global" e com as recomendações feitas de que destaco, por afinidade electiva:
- a dimensão educativa alargada;
- a articulação das políticas educativas com as políticas familiares e sociais;
- a reconfiguração da escola;
- a avaliação da qualidade e monitorização.

No conjunto de medidas de política acertadas e corajosas que se têm tomado nos últimos tempos, não quero terminar sem referir, ao reboque destas recomendações, um percurso arriscado (para não dizer errado) que se está a fazer e que só me parece poder ser justificado pela pressão social (e o papel ameaçador que representam os "fazedores de opinião") que quer bons resultados "já" e que tem um medo, que não consegue bem perceber, da confusão entre educação e "eduquês".

É que se repararem na comparação com os outros seis países que o Relatório refere, as crianças e os jovens daqueles em cujos resultados no PISA pomos olhos ávidos têm, durante o calendário escolar, mais tempo livre e tempo livre menos escolarizado. Gostei do que foi dito por Miguel Zabalza (da Universidade de Santiago do Compostela) quando contou que a "LOE sofreu vários percalços por confundir educação com escola", ou como também alguém disse no Seminário o importante que é as crianças e os jovens, no seu percurso de aprendizagem para a vida, poderem "deambular entre territórios diferentes".

Que com alguns próximos bons resultados cessem os medos das comparações internacionais e se mantenha a exigência de rigor e esforço numa escola a tempo inteiro mas que não "absorva" o tempo que não é nem deve ser da escola, nem permita que a estrutura disciplinar do ensino secundário colonize outras práticas, outros intervenientes e outros espaços bem mais interessantes e mais essenciais para a educação das nossas crianças e jovens!

* Técnica de Educação

Publicado no Jornal de Letras - Educação - Julho de 2008

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