Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

17.7.08
 
POR QUE CAMINHOS ANDA O CURRÍCULO DO 1º CICLO DO ENSINO BÁSICO?
Manuel Rangel*


Há cerca de 2 anos, aquando da publicação por parte do Ministério da Educação(ME) da legislação sobre as chamadas “actividades de enriquecimento curricular” (AEC) e da implementação da Escola a tempo inteiro, no 1º Ciclo do Ensino Básico, em artigo publicado na Revista 2 Pontos (*) intitulado “Gostamos de Tapar o Sol com a Peneira!”, afirmei o meu receio quanto ao caminho que estavam a tomar as perspectivas acerca do currículo neste Ciclo.

De então para cá, e à excepção dos programas de formação de professores lançados pelo ME, as medidas, directa ou indirectamente, ligadas ao currículo não parecem menos perigosas ou avulsas.

Chamei, então, especialmente a atenção, para o significado e concepções curriculares implícitas no Despacho do Secretário de Estado da Educação, com as designadas “Orientações para a Gestão Curricular no 1º Ciclo do Ensino Básico” (Despacho n.º 19 575/2006, de 25 de Setembro): através dele se pretendeu condicionar a acção das escolas e o papel dos professores, como não há memória de ter acontecido em Portugal, em relação a este ciclo. Nem nos tempos da visão mais autoritária e centralizadora da execução do currículo tal se tinha verificado.

De forma inédita, em relação a este ciclo, o Despacho tentou fixar o número de horas semanais, obrigatórias, para cada disciplina ou área de aprendizagem. Com essa medida, mais ou menos avulsa, se invertia – pelo menos em termos de princípios e filosofia “oficial” – todo o movimento, dos últimos anos, no sentido de atribuir ao professor e à Escola um maior papel e autonomia na gestão do currículo e que encontra a sua razão de ser, não em meros argumentos ideológicos, mas na constatação de muitos anos de investigação, provando que é no professor, na sua competência profissional e na sua formação que assenta a qualidade do ensino.
Voltar a uma perspectiva de execução rígida e cega de prescrições superiores, raramente entendidas e adoptadas na sua verdadeira intenção pelos executantes, é uma permanente tentação totalitária, em termos pedagógicos, mas não parece ser solução, nem poder levar a uma melhoria significativa do ensino.

Afirmei também, nessa altura, que embora tal não seja dito no diploma, nem aí impedido, a verdade é que, implicitamente, o Despacho contrariava a perspectiva de um currículo integrado e, sobretudo, de uma perspectiva integradora do desenvolvimento das crianças. A medida vinha, de resto, ao encontro das tentativas de “disciplinarização” (“licealização”) deste ciclo, tão desejada por alguns interesses corporativos e pelos sectores mais conservadores e retrógrados da sociedade portuguesa, ligados à educação.

A concepção do currículo do 1º Ciclo, implícita na legislação em causa, está, aliás, bem patente na distribuição que é feita das horas pelas diferentes áreas, e que a ambiguidade do texto do preâmbulo ao Despacho, desde logo evidencia.
Dele sai reforçada a perspectiva das áreas “sérias” e matérias “nobres”, de um lado, e, do outro… o “resto”! Transporta-se, assim, para a legislação, para a voz oficial, o mero senso comum, a conversa “primária” – de café ou autocarro! – do “ler, escrever e contar”, do “regresso ao básico”, na sua pior versão.

Afirma-se no Despacho, sem mais análise que “Com estas medidas, criam-se as condições para que, nos primeiros anos de escolaridade, as vinte e cinco horas lectivas de trabalho semanal sejam orientadas para o reforço dos saberes básicos e para o desenvolvimento das competências essenciais nas áreas de Língua Portuguesa, Matemática e Estudo do Meio”. O resto é desnecessário! É brincadeira! Está lá para enfeitar, ou para satisfazer os caprichos de alguns “poetas” da educação. Não há qualquer perspectiva sobre a ligação e articulação entre as áreas, em termos da aprendizagem e desenvolvimentos das crianças. Desde logo, na própria exigência de contabilização das horas para cada “disciplina”.
(Note-se, aliás, que o próprio site da DGIDC, a propósito deste assunto, “Princípios e Sugestões para a gestão do currículo do 1º ciclo” contempla apenas a Língua Portuguesa, a Matemática e o Estudo do Meio – Ensino das Ciências.)
As reacções ao despacho, então observadas, são, aliás, elucidativas. A satisfação, por um lado, dos responsáveis de algumas sociedades científicas e associações de professores (de outros ciclos): “finalmente!”; estas medidas “só pecam por tardias!”; “isso do currículo integrado sempre foi uma treta!”; etc. Depois, a reacção dos próprios professores do 1º ciclo, uns satisfeitos, outros nem tanto, mas que quase generalizadamente afirmavam, na altura, que “o ‘currículo’, agora, era apenas a Língua Portuguesa, a Matemática e o Estudo do Meio”; “as ‘expressões’ e a ‘educação física já não fazem parte do currículo; agora vão para as actividades de enriquecimento!”.

Afirmei, ainda, então, que o aspecto mais grave, subjacente a este Despacho, me parecia ser o facto de continuarmos a gostar de criar ilusões sobre os problemas reais e continuarmos à espera que tudo se resolva por obra de despachos.

Só quem não conhece, de todo, o 1º Ciclo e as práticas dominantes das escolas portuguesas é que poderá pensar que o problema da qualidade das aprendizagens, em áreas, sem dúvida, tão importantes como o Português e a Matemática, vem do reduzido número de horas que lhes é dedicado pelos professores. Aliás, e perversamente, se o despacho se viesse realmente a cumprir, contrariando as práticas, seria no sentido oposto ao insinuado: seria para “reduzir” a LP para 8 horas e a Matemática para 7, passando a despender-se 5 horas com as Áreas de Expressão e “restantes”.

O problema da qualidade das aprendizagens nessas disciplinas não está, efectivamente, no número de horas que se lhes dedica ao longo da semana. Aliás, se for para fazer mais do mesmo, o aumento de horas só poderá ser contraproducente!

O problema, todos o sabemos (em consciência e por estudo), reside fundamentalmente em três aspectos:
- numa consciência mais clara dos objectivos centrais, para os alunos, em relação à aprendizagem nessas áreas;
- no domínio efectivo, actualizado e aprofundado, dos conteúdos a ensinar;
- na forma de abordagem e nas metodologias utilizadas no seu ensino.
E isso assenta numa questão decisiva: a formação e as práticas dos professores. Mas esse é, de facto, um problema difícil de resolver e que não se soluciona (ou julga solucionar!) por um mero despacho!

Quase dois anos depois, qual me parece ser o balanço relativamente às perspectivas curriculares neste ciclo? Julgo haver três aspectos positivos a reconhecer e salientar:
- o mais significativo, tal como já referi, prende-se com o lançamento dos programas nacionais de formação nas áreas da Matemática, Língua Portuguesa e Ciências Experimentais;
- um segundo aspecto importante, refere-se ao cumprimento do objectivo de uma escola a tempo inteiro, na sua dimensão de resposta social (de resposta às necessidades das famílias), pelo prolongamento dos horários para quem disso necessita;
- o terceiro, enquadrado no anterior, diz respeito à oferta generalizada do Inglês, como complemento da formação neste nível de escolaridade.

No entanto, no que respeita especificamente ao currículo, e tal como há dois anos receava, a confusão parece generalizada. As medidas são avulsas, dispersas, não articuladas, quando não mesmo contraditórias:
- reina, desde logo, uma total confusão no que respeita a programas e orientações curriculares: um Programa ainda em vigor, a que se sobrepõe um longuíssimo documento de Competências Essenciais, que tende a ser até priorizado, mas cujas áreas nem sequer coincidem totalmente com as do Programa; um novo Programa saído há alguns meses, de forma totalmente desgarrada para a Matemática; o anúncio da elaboração para breve de um outro, também isolado, para a Língua Portuguesa… (será caso para perguntar como se pode esperar que coordenem os professores aquilo que o ME não é capaz coordenar?!);
- em todos as medidas tomadas, mesmo nas mais positivas, se passa e prolonga uma visão de “primeira” e “segunda” relativamente às diferentes áreas que compõem o currículo; passa-se do currículo uma visão desarticulada e desintegrada, que há longos anos se procurava inverter;
- existe, neste momento, uma sobreposição e confusão generalizadas entre o currículo e as actividades de complemento curricular (aliás o próprio nome de “enriquecimento curricular ” já traduz essa ambiguidade, fazendo lembrar a “escola cultural” de há uns anos atrás!): não se faz no currículo porque “agora foi para as AEC”; e nas ditas AEC reproduz-se de um modo geral a organização e o estilo do currículo, no seu sentido mais tradicional e indesejável.

A situação exige, pois, uma enorme reflexão e grande esforço para que se “arrume a casa”. Ninguém ganha com este estado geral de confusão e os alunos – razão de ser de todo o sistema! – perdem, de certeza, na sua aprendizagem.

No momento em que se discute uma aproximação entre o 1º e o 2º ciclo e uma perspectiva integrada para educação dos 0 aos 12 anos, em Portugal, esta confusão é incompreensível e indesejável.


* Director da Escola "A Tangerina"

Publicado no Jornal de Letras - Educação - Julho de 2008

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