Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

12.9.08
 
CRIANÇAS E INTERNET:
OPORTUNIDADES E RISCOS

Portugal: o Fosso Digital entre Crianças e Adultos

Cristina Ponte*

Como as crianças de outros países europeus, também as crianças portuguesas vivem com entusiasmo as oportunidades da Internet fixa e das plataformas móveis. O contexto português apresenta, contudo, traços que importa ter em conta na definição de políticas de intervenção e de regulação. Portugal é um dos poucos países europeus onde as crianças usam mais as novas tecnologias do que adultos, e os pais portugueses são dos que menos conhecem o que os seus filhos fazem on-line.

A identificação desses sinais foi feita pelo Projecto EU Kids On-line, na comparação de 21 países europeus[1]. Equipas de investigadores de cada país caracterizaram os acessos e usos do on-line por crianças e jovens (até 18 anos) e o ambiente nacional quanto à penetração e regulação dos media, os discursos públicos dominantes, as características do sistema educativo, a existência de uma educação para os media e as atitudes e valores culturais em geral e sobre as crianças em particular. Os resultados deste estudo europeu estão disponíveis na Internet a partir de 26 de Setembro[2].

A comparação dos 21 países (Alemanha, Áustria, Bélgica, Bulgária, Chipre, Dinamarca, Eslovénia, Espanha, Estónia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Islândia, Itália, Noruega, Polónia, Portugal, República Checa, Suécia e Reino Unido) incidiu ainda sobre a mediação dos pais, indicadores como a idade e sexo da criança, a situação socioeconómica das famílias, as intervenções de professores e de pares. Se é da conjugação de todos estes factores que resultam os riscos e as oportunidades, considera-se também que, como no mundo real, as oportunidades e a atenção aos perigos do mundo virtual estão relacionadas com as atitudes e as capacidades das crianças, desenvolvidas não só pela sua literacia digital mas também pelos ambientes de promoção de segurança, de autonomia e de responsabilidade cívica.

O levantamento da informação disponível fez emergir uma paisagem europeia a diferentes velocidades no que toca à penetração da Internet na vida das crianças e às considerações de risco que estas e os pais exprimem. Em Portugal, como noutros países do sul da Europa, a penetração e a atenção aos riscos e às oportunidades ainda são relativamente baixas, por contraste com outros países do norte e centro da Europa. As crianças ainda acedem mais na escola do que em casa mas a tendência é para o crescimento nos lares. Enquanto isso, as crianças portuguesas estão entre as que têm mais telemóveis, explorando por esse meio o ambiente interactivo e procurando as experiências de comunicação em rede, como as mensagens SMS e a partilha de imagens.

Esta situação vai a par de uma maior exclusão digital por parte dos pais: Portugal é um dos dois únicos países onde a taxa de acesso e uso da Internet é mais elevada nas crianças do que nos adultos (o outro é a Polónia). Nestes dois países existe assim da parte dos pais uma intervenção maior nas regras sobre a televisão do que sobre a Internet.

Estes ambientes não devem ser ignorados quando se pensa em políticas públicas de promoção do acesso e do uso do digital por crianças. Como o estudo aponta, em países como Portugal, considerações de que os pais devem e podem, na prática, ser os responsáveis pela segurança da criança na Internet precisam de ser cuidadosamente apreciadas nos seus limites e viabilidades. Por isso, acrescentamos, o discurso público favorável à penetração das novas tecnologias na sociedade portuguesa (o famoso “choque tecnológico”) precisa de ser acompanhado por medidas de mobilização e de responsabilização de todos os parceiros envolvidos, das instâncias de regulação às escolas, dos produtores de conteúdos aos fornecedores de acesso. A promoção de ambientes de segurança e de consciencialização cívica deverá envolver também as crianças de um modo activo, ter em conta aquilo que elas fazem na experiência em linha (muito para além da dimensão escolar e dos currículos disciplinares), onde e como fazem: jovens formadores, enquanto pares, podem ser eficazes mediadores entre os mais novos a nível da tecnologia e das práticas sociais.

Um outro padrão, transversal aos países, aponta para diferenças relacionadas com a situação socioeconómica das famílias. Como apontam estudos relativos às regras sobre a televisão, também parece existir maior mediação parental sobre a Internet em famílias de posição social mais elevada. Tendo em conta que o nível de escolaridade dos pais portugueses (com mais de metade a não ir além do ensino básico) está muito abaixo dos padrões europeus, este factor associado à menor inclusão digital por parte das famílias, exige atenção na informação disponível para uso dos novos meios em segurança, nos lares.

Talvez por esta falta de experiência digital, os pais portugueses distinguiram-se também nas considerações de que na Internet as crianças mais novas correm mais riscos do que as mais velhas e de que raparigas correm mais riscos do que rapazes. Estas posições vão contra o que a pesquisa tem confirmado: que há uma correlação positiva entre os riscos e as potencialidades do uso da Internet (mais exploradas pelas crianças mais velhas) e que ambos os sexos realizam actividades que tiram partido dessas potencialidades e que comportam situações de risco.

O retrato português entre os 21 países levanta por isso “inquietações pedagógicas” que decorrem de uma quase ausência de sensibilidade para as questões da educação para os media na agenda pública em geral e do Ministério da Educação em particular, apesar das recomendações europeias sobre a necessidade de os Estados-membros definirem linhas para o fortalecimento da literacia mediática ao longo da vida. Tendo presentes estes traços de fragilidade do contexto nacional, não estaremos a cair no “determinismo tecnológico” e a perpetuar o fosso digital – entre gerações e entre crianças com diferentes recursos socioeconómicos?



*Professora da FCSH-Universidade Nova de Lisboa, coordenadora em Portugal do projecto EU Kids Online
[1] O Projecto EU Kids Online, liderado por Sonia Livingstone, do Reino Unido, é financiado pelo Programa europeu Safer Internet Plus. Mais informações em www.eukidsonline.net ou pelo site português, disponível em www.fcsh.unl.pt/eukidsonline
[2] Hasebrink, U., Livingstone, S. e Haddon, L. (2008). Comparing children’s online opportunities and risks across Europe: Cross-national comparisons for EU Kids Online. Relatório disponível nos sites indicados.


Publicado no Jornal de Letras - Educação Agosto de 2008

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