Inquietações Pedagógicas

"Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso…"  Jorge de Sena in Metamorfoses

4.12.08
 

Ainda a propósito da avaliação dos professores
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O INVERNO DO NOSSO DESCONTENTAMENTO *

Foi John Steinbeck, o mesmo que chamava aos professores “caçadores de pirilampos” porque fazem nascer o conhecimento a partir dos pequenos pontos de luz que ensinam os seus alunos a descobrir, quem titulou desta forma um notável romance sobre um personagem ambíguo que, tendo perdido tudo, recomeça a sua ascensão na vida mas num percurso cheio de ínvias decisões e eticamente discutíveis oportunismos - decisões que a ele mesmo, no interior da consciência, causam angústia e perplexidade.
Peço-lhe de empréstimo o título para sintetizar em alguns pontos os porquês do meu particular descontentamento, nesta tarde em que escrevo, de um inverno marcado por muitos outros descontentamentos que respeito. Descontentamento o meu tão legítimo quanto outros, a que tenho direito e que não quero nem devo silenciar, cidadã que sou e lutei para ser, por um país democrático sem intervalos, profissional que sou e fui do seriíssimo ofício de ensinar, que estudei, estudo e investigo - porque requer saber, esta coisa de ensinar de que tantos gostam de falar no espaço público, quase sempre opinando no plano do puro senso comum. Ofício em que, como tantos outros da comunidade a que me honro de pertencer, também iniciei, acompanhei e supervisionei muitos outros, tal como outros também me ensinaram e ainda ensinam a especificidade e a complexidade de ser professor.
Falo-vos pois dos professores. E daquilo que se tem chamado a sua luta contra um alegadamente persecutório modelo de avaliação do desempenho docente, isto é, do acto de ensinar que nos caracteriza e distingue como profissao na malha complexa do tecido social dos nossos dias. Não falo dos professores de há 50 ou 100 anos, professores esses de outro momento histórico, adequados ao seu tempo, portadores de um saber ao tempo restrito a poucos, e por isso muito valorizado socialmente, que distribuiam ex cathedra, uns muito bem, outros nem tanto, a um grupo razoavelmente restrito, homogéneo e predisposto, por pertença e cultura, a acolher os seus ensinamentos. Nem vos falo, como se tornou moda nos debates entre educadores de bancada, de quanto “no meu tempo” eu e os meus parceiros da minoria mais ou menos brilhante e razoavelmente selecccionada, que chegava aos estudos mais adiantados, e que éramos , no meu 5º ano do então ensino liceal, cerca de 5% do respectivo escalão etário. Apesar de muitos, dentro e fora da escola se obstinarem em não o ver, o mundo mudou, a escola é que nem por isso – por isso mesmo se tornou tão mais difícil e complexo ser professor. Mas também mais valioso e mais indispensável socialmente. Falo da dificuldade de ser professor da escola pública de hoje e de amanhã, a de todos e para todos, a que por isso mesmo se tornou bem mais difícil de fazer funcionar bem, isto é, garantindo que o superior direito de todos a aprender é concretizado, através de uma acção aprofundada, modificada e mais eficaz de todos nós, os professores, os gestores, os formadores, os académicos.

Falo de ser professor hoje, nessa escola e com essas dificuldades que, por razões de experiência profissional longa, muito trabalho de formação e alguma pesquisa reconhecida, conheço bastante bem. Não é fácil ensinar hoje, não. Nem se parece nada com o imaginário falacioso que se projecta naqueles professores que outrora só tinham que ensinar quem estava predisposto para aprender. Mas é ensinar o que faz (ou não ) um professor – só que hoje e no futuro previsível isso significa ensinar, e ensinar bem, a todos os que proclamamos com direito a uma cidadania plena. Tarefa que só pode merecer o nosso respeito e justificar tudo o que se faça para a melhorar, distinguir, apoiar, dignificar e, por tudo isso, garantir-lhe a dignidade de ser avaliada.

Pois nasce-me daqui o pesado descontentamento de que aqui falo:
De ver que os professores reclamam – e fazem-no no uso do direito democrático de se manifestarem , o mesmo que eu uso aqui - contra uma avaliação que pela primeira vez incide sobre o cerne do seu desempenho , isto é – a sua acção de ensinar.
De ouvir afirmar que sempre foram avaliados e aceitaram ser avaliados, que rejeitam este, mas aceitam outro “modelo”, desde que não este. Creio que o dizem de boa fé mas não corresponde à história da avaliação de professores amplamente documentada. Nunca , em nenhum dos regimes de avaliação, houve avaliação de desempenho docente , observado, supervisionado e avaliado. Houve sim regimes que utilizaram outros referentes (formação, tempo de serviço, relatório de actividades, por exemplo). Como também é conhecida por todos a relutância dominante na classe, por razões de cultura sedimentada em muitas décadas, de abrir mão do carácter individual e privado da aula, aquilo que a tipologia de Andy Hargreaves, um conceituado investigador canadiano, descreve como uma cultura profissional baseada no individualismo. Esta característica é uma resultante de múltiplos factores, não um “crime” da classe. Mas bloqueia e tem inviabilizado muita da necessária melhoria, que cada vez mais se sabe requerer mais trabalho colaborativo entre pares, mais supervisão e regulação. Nos resultados do famoso TIMSS também consta que a taxa de trabalho docente supervisionado, relativamente aos alunos de Matemática e Ciências que foram sujeitos do estudo, era de 4% em Portugal para uma média de 60% nos restantes países. A prática da supervisão com avaliação de desempenho da acção de ensinar só existe entre nós no período de estágio ( o que corresponderá aos 4% identificados acima) e ainda assim tolerada numa grande maioria de casos com grande sofrimento, apenas mitigado pela ideia de que depois nunca mais acontecerá. . O problema novo da avaliação de desempenho que agora se inicia é que justamente reverte essa lógica. Daí a violência e a aparente adesão maciça à sua contestação
Pesa-me e algumas vezes me envergonha o tom – o direito de contestar é inalienável, e compreende-se que seja emocional; mas não se aceita que seja insultuoso. Aceito ainda menos a ausência de análise dos pressupostos de avaliação proposta, o silêncio sobre a adequação ou não dos parâmetros , a não produção de sugestões de instrumentos mais eficazes e menos burocráticos, que está expressamente reconhecida no Decreto Regulamentar 2/2008 , desenvolvida nas Recomendações de 8 de Julho do Conselho Científico da Avaliação de Professores, disponível na respectiva página, e agora retomado nas alterações/especificações. O discurso, repetitivo e reduzido à repetição de uma negação que não se argumenta, surpreende-me porque vindo de professores. Permanece inexplicável, tal reacção mesmo quando as alterações recentemente introduzidas seguem por ponto todas as queixas expressas, alterações de que até, nalguns aspectos discordo. Tal postura não visibiliza a capacidade de fazer propostas que os professores certamente têm. Alguns têm-no feito, mas a pressão da massa sobre os divergentes é, historicamente o sabemos, muito pesada. O que ofende a minha crença no direito à opinião livre e ao pensamento divergente.
Descontenta-me ainda que o primeiro esforço sério no sentido da avaliação real a que os professores têm direito, centrada no seu agir científico-pedagógico, tenha sido finalmente lançado, depois de décadas em que não houve coragem de enfrentar a sua necessidade, sem acautelar timings mais graduais, acompanhamento mais directo, alargamento faseado. O que, estou em crer, será introduzido no processo no sentido da sua real apropriação pelas escolas., envolvidas na transformação difícil de uma cultura e um nó de rotinas organizativas que é preciso romper. Mas é preciso que os professores compreendam que são eles que têm o poder de o fazer, assumindo os dispositivos de autonomia e liderança pedagógico-científica que lhes cabem na regulaçao interna dos processos e resultados do seu trabalho e do seu saber.
Nenhum governo, seja ele qual for, seja qual for o sistema , o partido, a equipa, vai daqui em diante poder regressar ao passado nesta matéria , porque o passado já não é viável. Falta que os professores e escolas e a sociedade em geral se dêem conta disso: de que a história da escola pública e da afirmação profissional dos docentes – a atravessar um momento histórico crucial - não se parece com uma luta dos bons e dos maus , de vítimas e perseguidores, nem se situa apenas na oposição entre um qualquer ministério e seus funcionários. É uma questão social central e incontornável , em que são os profissionais que têm de tomar a dianteira, numa sociedade que queira fazer da educação o seu capital maior e a sua aposta no futuro.
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Maria do Céu Roldão
* Artigo publicado no Jornal de Notícias de 2/12/2008



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